PARA COMPRAR NA PLANTA, ALICERCES SEGUROS

ESPECIALISTAS APONTAM OS CUIDADOS ANTES DE SE FECHAR UM NEGÓCIO E QUE O MERCADO IMOBILIÁRIO ESTÁ MAIS SEGURO

  

Adécada era a de 1990. A Encol era uma das maiores empresas brasileiras no setor da construção civil. Mas, vítima da má gestão de sua diretoria, denunciada pelo Ministério Público Federal e condenada em uma CPI, acabou levada à falência em 1999, por uma crise de inadimplência e uma intervenção do Banco do Brasil. Como espécie de herança maldita, deixou vários edifícios inacabados no país. Lá se vão mais de três décadas, e, até hoje, esse é um fantasma que ainda assombra o mercado imobiliário como um todo, e a cabeça de quem pensam em adquirir um imóvel na planta, em especial. O que esse episódio nos ensinou? O que mudou de lá para cá? Os riscos de algo semelhante ocorrer ainda são grandes? Como se proteger? Quais garantias são possíveis de exigir? Dois especialistas procurados pela Revista dos Condomínios vão responder a essas e outras perguntas.

Sérgio Itagiba, advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito (da UFRJ); especialista em Direito Imobiliário pela PUC- -Rio; e membro das Comissões de Direito Imobiliário e Condominial da OAB/Niterói e da OAB/São Gonçalo, faz um alerta: “Não há, como nunca haverá, modelo de negócio 100% seguro. Mas há negócios mais ou menos arriscados. A compra de imóvel na planta, a despeito de envolver preços algumas vezes mais atraentes, deve se revestir de cautelas. Antes de procurar um imóvel, é importante o consumidor verificar a saúde financeira da incorporadora, para já excluir de sua procura os empreendimentos daquelas em situação comprometedora. Em momentos de instabilidade financeira, onde o mercado de incorporações é mais afetado, essa primeira cautela é a maior de todas”.

“A segunda cautela é verificar se o empreendimento está sendo desenvolvido sob regime de patrimônio de afetação, que, em resumo, separa terreno e construção do empreendimento do patrimônio da incorporadora para evitar que outras dívidas da construtora afetem o empreendimento em análise. A terceira cautela é imprescindível: procurar um advogado especialista em Direito Imobiliário para analisar a documentação do empreendimento e os eventuais contratos e documentos que o adquirente venha a assinar. Não existe ‘dica’ ou informação em qualquer lugar que substitua a análise de um advogado competente em cada caso específico”, pontua Itagiba, também membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.

Para ele, o episódio do caso Encol – classificado como uma verdadeira ‘novela’ – causou um profundo abalo no mercado imobiliário. Na época, não existia o patrimônio de afetação, e então a construtora utilizava todos os recursos que entravam de todos os empreendimentos, para financiar todas as construções, indistintamente. Mas essa é uma conta que não tinha como fechar, uma vez que a Encol entrou em um círculo vicioso no qual passou a depender do lançamento de novos empreendimentos para custear construções mais antigas. Quem viveu aquela época se lembra do marketing forte da empresa e da quantidade de empreendimentos que ela lançava, simultaneamente.

“A lição desse caso para o mercado imobiliário foi a necessidade de se criarem mecanismos de proteção para adquirentes de unidades em empreendimentos de incorporação. O mercado imobiliário nacional caiu em descrédito por causa da falência da Encol. De lá para cá, o mercado respondeu com a criação do patrimônio de afetação, onde o empreendimento (terreno, construção, créditos a receber…) fica completamente separado do patrimônio da construtora, justamente para garantir a finalização da construção. A invenção do patrimônio de afetação é devido à engenhosidade da mente de Melhim Chalhub, certamente o maior jurista brasileiro na área de incorporações imobiliárias, e ocorreu com a Lei 10.931/2004”, recordou.

Sérgio Itagiba pondera ainda que o advento do patrimônio de afetação foi uma verdadeira revolução no mercado brasileiro e, assim, serviu para evitar muitos riscos e tragédias para os adquirentes, mas não é algo que torna o empreendimento 100% seguro. Por isso, ele diz, investigar com antecedência a saúde financeira da incorporadora é imprescindível. “O caso PDG nos mostra isso: a empresa cresceu tanto que, na última crise econômica, sua estrutura ficou insustentável, e até mesmo empreendimentos submetidos ao patrimônio de afetação foram paralisados. Se a PDG existisse naqueles tempos da Encol, possivelmente teria tido o mesmo destino”, sentencia.

GARANTIAS

Para o especialista, uma das maiores “garantias” que os adquirentes podem ter é verificar se o empreendimento efetivamente está submetido ao regime do patrimônio de afetação e verificar se está hipotecado para alguma instituição financeira. É muito comum que as incorporadoras tomem dinheiro emprestado de instituições financeiras para financiar a construção, e a contrapartida é dar o terreno e a construção como garantia. “Empreendimentos que não estão hipotecados são uma boa pedida, mas apenas se houver segurança de que a incorporadora goza de boa saúde financeira ou se ela tem tradição de construir com recursos próprios, mas essa última opção é rara no mercado de hoje.”

Quanto ao pagamento, verificar as condições que a incorporadora oferece é importante. Se o empreendimento estiver sob o regime de afetação, o valor já pago será revertido para a finalização do próprio empreendimento. Se o regime não é esse, recomenda-se nem mesmo considerar a aquisição, pois o dinheiro do comprador poderá ser utilizado pela construtora com outra finalidade. Muito embora os contratos sejam parecidos, as cláusulas contratuais de cada empreendimento devem ser vistas e analisadas individualmente, pois cada contrato pode ter sua nuance. “E, no caso da não entrega de um imóvel contratado, a intervenção de um advogado também é imprescindível, pois poderá ser necessário o ingresso no Judiciário ou tentar resolver no extrajudicial o recebimento das multas contratuais. Vale observar se a aquisição é anterior à Lei 13.786/2018, chamada ‘Lei dos Distratos’, já que, nessa hipótese, o entendimento jurisprudencial é o de que essa lei não se aplica”, conclui.

Experiente advogado da área imobiliária e presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB Niterói, Marcelo Funes ajuda a esclarecer sobre o tema. “Podemos afirmar que a compra de um imóvel na planta continua sendo excelente opção, tanto para moradia quanto para investimento. Desde que o adquirente esteja devidamente cercado por todos os cuidados necessários”, garante ele, para quem o episódio da Encol, no final da década de 1990, fez que o mercado imobiliário amadurecesse as relações. “Os adquirentes de imóveis passaram a se cercar de maiores cuidados, bem como as Instituições Financeiras passaram a exigir garantias efetivas, aumentando o rigor nas aprovações de crédito para as Incorporadoras.”

CUIDADOS

No modelo mais tradicional, na compra do imóvel na planta o adquirente paga, durante a fase de construção, o percentual de 20% a 30% do valor do preço do imóvel. Entretanto, o saldo residual que será financiado quando da emissão do habite-se ou pago via recursos próprios será corrigido monetariamente até o efetivo pagamento. É fundamental que o adquirente, ao comprar um imóvel na planta, pesquise a incorporadora responsável pelo empreendimento, verifique a documentação do empreendimento na busca de informações, se será financiada por alguma instituição financeira, se possui seguro e está sob o regime de afetação, além de se certificar se houve o registro do memorial de incorporação, passando sempre pela frente da construção e olhando o andamento.

“Além disso, o adquirente deve se preocupar em obter por escrito todo e qualquer valor que deverá pagar fora do preço do imóvel, como as taxas de ligações de
finitivas ou outro qualquer valor, analisar muito bem o memorial descritivo do empreendimento, bem como toda e qualquer manifestação deve ser formalizada por escrito. Muito importante também que conste no contrato a data-limite para emissão do habite-se, a descrição do imóvel com a área, acabamentos e material a ser utilizado. Além disso, deve constar expressamente a penalidade da incorporadora em caso de atraso na entrega. Por fim, importante também que o adquirente tenha acesso à futura minuta da convenção do condomínio, a qual dará a este comprador uma noção das futuras regras que deverá observar quando da conclusão das obras e consequente instalação do condomínio”, explica Funes.

Para o especialista, não havendo a entrega do imóvel no prazo definido em contrato, o adquirente deve procurar a incorporadora para tentar uma composição amigável. Não havendo conciliação, e sendo o atraso substancial, o comprador deve notificar a incorporadora, solicitando a observância das penalidades pelo atraso, seja para manter a compra com as penalidades neste sentido, como para que se faça o distrato ou a resolução contratual em face do inadimplemento pela incorporadora, devendo todo valor ser ressarcido. Entretanto, alerta, em sintonia com as orientações de Sérgio Itagiba: é essencial que, procure um advogado especializado na área.

Assim, será que dá para se valer das vantagens de se comprar um imóvel na planta, desde que tomadas todas as precauções? De acordo com ele, sim. “Tivemos novos casos de construtoras em crise recentemente, sendo que algumas incorporadoras continuam em fase de recuperação judicial, prejudicando milhares de adquirentes”. Mas, felizmente, podemos dizer que é pequeno o risco de acontecer algo semelhante ao caso da Encol. “Os casos de hoje são bem pontuais”, conclui.