Animais comunitários em condomínio: o que garante a legislação?
Revista dos Condomínios foi ouvir a especialista Giovana Poker sobre animais comunitários e algumas questões que se apresentam sobre o tema. De acordo com ela, os animais comunitários são aqueles em situação de rua, mas que desenvolvem vínculo de afeto, cuidado e manutenção com os moradores da localidade onde vivem. Esses animais geralmente são cães e gatos, pois se tratam das espécies mais superpopulosas nos meios urbanos.
Por mais que não seja a solução ideal para os animais abandonados, “conceder os devidos cuidados a esses animais que vivem em vias públicas, ou em áreas comuns condominiais, e que não têm tutor definido, é uma maneira minimamente eficaz de garantir o seu bem- -estar” – garante Poker.
Embora não possuam “uma família humana determinada, os animais comunitários precisam ter, pelo menos, um cuidador principal, que será a pessoa responsável por prover água, alimentação, abrigo, castração e atendimento veterinário quando necessário” – completa.
DIREITOS ASSEGURADOS
Além disso, as leis gerais de proteção animal (a Regra Constitucional de Vedação à Crueldade Animal – art. 225, §1º, VII e o Crime de Maus Tratos – art. 32 da lei 9605/98), se aplicam em relação aos animais comunitários e, portanto, “privá-los do direito fundamental à alimentação, impedindo que recebam cuidados básicos para sua sobrevivência e impondo-lhes sofrimento de forma proposital configura um ato inconstitucional e criminoso, passível de investigação e punição na esfera cível e penal” – destaca a especialista.
Portanto, e ainda de acordo com ela, mesmo nos municípios que não dispõem de legislação específica sobre animais comunitários é possível pleitear a proteção dos interesses deles e de seus cuidadores em juízo, caso sejam desrespeitados.
ILÍCITO CIVIL E PENAL
Assim, é expressamente garantido pela legislação atual o direito de qualquer cidadão em alimentar os animais comunitários em via pública ou nas áreas comuns condominiais, sendo que qualquer ato que vise impedir a permanência ou a alimentação desses animais pode ser configurado como um ilícito civil e penal.
O QUE DIZ A JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA?
A maioria expressiva da jurisprudência nacional já vem se manifestando no sentido de garantir os direitos fundamentais dos animais “acima de eventuais interesses individuais de pessoas físicas ou jurídicas que queiram impedir a presença e os cuidados em relação aos animais comunitários” – informa Poker. Segundo ela, é entendimento majoritário que mesmo as decisões tomadas em assembleia, ou constantes no regulamento interno do condomínio, que visem a proibição da alimentação desses animais são nulas, em razão de seu teor ilegal.
DIREITO PRESSUPÕE UMA SÉRIE DE CUIDADOS
O entendimento é de que os animais, enquanto seres vivos, que sentem (sencientes), possuem constitucionalmente assegurado o direito de não serem tratados com crueldade e terem uma vida digna. Esse direito, obviamente, pressupõe uma série de cuidados humanos que devem ser garantidos, para que os animais domésticos tenham acesso às suas necessidades básicas, tais como: alimentação, água, abrigo e assistência veterinária quando necessário.
PROCESSOS JULGADOS – RELACIONADOS ABAIXO:
Cuida de impedir que o condomínio requerido retire os “gatos comunitários” de sua área externa, os quais são cuidados e mantidos pela requerente. A conduta da autora não é irregular e, aliás, é possível que cães e gatos “de rua”, cuidados com frequência por determinada comunidade ou pessoa, sejam caracterizados como “animais comunitários”, ou seja, animais que não possuem um tutor ou lar específicos, mas que permanecem sob os cuidados de uma ou mais pessoas.
Não observo, portanto, irregularidades nas condutas da parte autora (requerente)
“O entendimento é de que os animais, enquanto seres vivos, que sentem (sencientes), possuem constitucionalmente assegurado o direito de não serem tratados com crueldade e terem uma vida digna”
Deve-se observar a Constituição 25 Federal, onde estão tutelados juridicamente a vida e o bem- -estar, bem como, a obrigação do Poder Público e de toda coletividade o dever de defender e preservar os animais (conforme Art. 225), o qual também veda quaisquer práticas que submetam os animais a crueldade.
Ainda, os reclamados não trouxeram aos autos quaisquer outros locais aptos a receberem e cuidarem dos referidos animais, caso estes fossem retirados do seu até então local de convívio e moradia, caracterizando-se abandono caso a propositura do condomínio fosse concretizada. Ainda, quanto a proibir os demais moradores a alimentá-los, no mínimo, caracteriza-se maus tratos (de acordo com a Lei 9605/98). De qualquer modo, destaco que animais “de rua” ou “comunitários” precisam ser tratados e observados com a cautela necessária no sentido de que não apresentem doenças e descontrole na reprodução, situações que, de fato, colocam em risco os próprios animais e os seres humanos da localidade.
Assim, tenho que há evidências sufi cientes para confi rmar a decisão liminar que determinou a permanência dos gatos no local, bem como que o condomínio se abstenha de multar a autora apenas pela presença dos felinos e por alimentá-los.
(Sentença proferida da Ação Ordinária c/c Pedido de Tutela de Urgência e Obrigação de Não Fazer nº 8008108-54.2019.8.05.0080. Órgão Julgador: 2ª V de feitos de Rel. de cons. Cível e Comerciais de Feira de Santana. Julgado em 17/12/2021).
De acordo com a especialista, Giovana Poker, a sentença acima deixa claro “diante dos diversos precedentes apresentados, o entendimento da jurisprudência majoritária no sentido de proteger os direitos dos animais comunitários, assegurando a eles o direito de serem alimentados e cuidados, inclusive nas áreas comuns condominiais” – destaca ela.
E NOS CONDOMÍNIOS: COMO LIDAR COM A QUESTÃO?
Ela conclui afi rmando que o condomínio pode regulamentar regras de permanência e cuidado dos animais comunitários em condomínio, de modo a conciliar os interesses da “coletividade de moradores com os direitos assegurados a esses animais” – indicou e deu um exemplo: uma maneira é determinar locais fi xos de alimentação; elaborar uma fi cha cadastral dos animais e seus respectivos cuidadores; requerer junto à prefeitura a castração e a vacinação gratuita dos animais que vivem nas áreas comuns – elencou.
ASSEMBLEIA: FÓRUM ADEQUADO PARA REGULAMENTAR ENTENDIMENTO DA COMUNIDADE
De acordo com Poker, tais regulamentações podem ser defi nidas por meio de votação em assembleia, ou até mesmo em sede de mediação com os cuidadores dos animais comunitários do condomínio.
POSSIBILIDADE DE ACORDOS EXTRAJUDICIAIS
A advogada animalista propõe, como solução, a possibilidade de realização de acordos amigáveis entre os cuidadores de animais comunitários e a administração dos condomínios para evitar que eventuais confl itos se agravem e acabem tendo que ser resolvidos judicialmente, o que prejudica a convivência dos moradores e impõe altos custos processuais para todos os condôminos. É o que ocorreu em um caso verídico em São Gonçalo.
ENTENDIMENTO DA COMUNIDADE NÃO PODE IR CONTRA O QUE DIZ A LEI
Entretanto, é juridicamente inviável que o condomínio estabeleça qualquer tipo de proibição em relação à permanência e à alimentação de animais comunitários nas áreas comuns condominiais – ressalta a especialista.
De acordo com Poker, a existência de legislação protetiva e de jurisprudência, nacionalmente consolidada sobre o tema, garantem o entendimento de que as regulamentações condominiais não podem dispor de forma contrária às disposições legais existentes, que garantem o direito ao bem-estar e à privação de sofrimento a todos os animais, inclusive àqueles que estão em situação de rua.
SÍNDICOS: AÇÃO CONTRA ANIMAIS PODE GERAR MULTAS AOS CONDOMÍNIOS E RESPONSABILIZAÇÃO PESSOAL
A especialista, Giovana Poker, ressalta que os síndicos devem ser cautelosos e “sempre buscar assessoria jurídica especializada sobre o tema, pois a imposição de regras e/ou sanções abusivas, são ilegais, e podem acarretar na responsabilidade civil e criminal do condomínio e, dependendo do caso, também do síndico como pessoa física.
LEGISLAÇÕES APLICÁVEIS
Apesar de não existir uma legislação federal específica sobre animais comunitários, muitos estados e municípios brasileiros têm aprovado regras para a sua proteção, como é o caso das leis abaixo transcritas dos municípios do Rio de Janeiro e Niterói:
LEI Nº 6435/2018 – RIO DE JANEIRO
Art. 5º Para efeitos desta Lei, entender- -se-á por:
VI – comunitários – os animais que estabeleceram com membros da população local onde vivem vínculos de afeto, dependência e manutenção.
Art. 28. O animal comunitário deverá ser mantido no local onde se encontra, a não ser que este ofereça quaisquer riscos a sua integridade física.
DECRETO RIO Nº 46237/2019
Art. 11. O animal comunitário deve ser mantido no seu local de convivência, ficando sob a supervisão da SUBEM quando houver riscos a sua integridade, a qual competirá:
I – prestar atendimento médico veterinário;
II – realizar esterilização;
III – proceder à identificação, por meio de cadastro renovável anualmente.
§ 1º Para efeito deste Decreto, entende- -se como animais comunitários aqueles que estabelecem, com membros da população onde vivem, vínculos de afeto, dependência e manutenção.
§ 2º Em se tratando de suspeita de incidência de zoonose, a SUBEM encaminhará o animal à SUBVISA para atendimento.
Art. 12. São considerados responsáveis pelo animal comunitário, os membros da comunidade que com ele tenham estabelecido vínculos de afeto e de dependência emocional recíproca, para tal fim, se disponham voluntariamente.
LEI Nº 3153/2015 – NITERÓI/RJ
Art. 10. Para fins dessa lei é considerado animal comunitário o animal que embora não possua guardião definido, seja tutelado ou estabeleça vinculo de afeto e dependência com pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, entidade sem fins lucrativos ou grupo de pessoas ligadas por laços de amizade ou vizinhança que não sendo proprietário se coloca na posição de guardião do animal sem, contudo, retirá-lo da via pública ou local que utilize como moradia.
Art. 11. Os animais comunitários devem ser mantidos no local onde se encontram.
Art. 13-A. Fica assegurado o direito ao fornecimento de alimentação e/ou água aos animais que estão em situação de rua, por qualquer pessoa física ou colaborador de pessoa jurídica, em espaços públicos, repartições públicas ou similares e áreas comuns de condomínios.
AINDA, PODEMOS CITAR A LEI ESTADUAL Nº 6.464 DE 2013 DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO:
Art. 2º A Lei nº 4.808, de 4 de julho de 2006, fica acrescida do artigo 35-A e seu parágrafo único, com a redação abaixo:
“Art. 35-A Fica considerado como animal comunitário aquele que, apesar de não ter proprietário definido e único, estabeleceu com membros da população do local onde vive vínculos de afeto, dependência e manutenção”.
CÓDIGO DE PROTEÇÃO AOS ANIMAIS – ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reconhece como maus-tratos qualquer tipo de obstrução ao direito de alimentação dos animais:
Lei n° 3.900, de 19 de julho de 2022, com a seguinte redação:
Art. 1º O artigo 1º da Lei nº 3.900, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1º Ficam estabelecidas normas para a proteção de animais – não humanos – no Estado do Rio de Janeiro, visando a defendê-los de abusos, maus-tratos e outras condutas cruéis.”
Art. 5º-A Considera-se abuso ou maus- -tratos contra os animais, entre outras condutas cruéis:
I – Privar os animais de receber água, alimento adequado e abrigo das intempéries, em desacordo com suas necessidades fisiológicas e etológicas, ou seja, observando as exigências peculiares de cada espécie.
O QUE DIZ A LEI? DIREITOS DOS ANIMAIS COMUNITÁRIOS NOS CONDOMÍNIOS
Os animais comunitários possuem os mesmos direitos de qualquer animal doméstico e devem ter assegurado seu bem- -estar e dignidade. Vale lembrar que: aquele que atentar contra a vida ou a integridade dos animais comunitários ou tentar impedir que eles recebam os devidos cuidados, poderá responder pelo crime de maus tratos, além de ser acionado pela via cível.
1. Direito à integridade física e psicológica – esse direito é assegurado pelo art. 32 da Lei de 9605/98, confi gurando CRIME de maus tratos a imposição de sofrimento desnecessário aos animais. A Constituição Federal, em seu art. 225, §1º, VII, também estabelece que são vedadas as práticas que submetam os animais à crueldade.
De acordo com a Resolução nº 1236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária – CFMV, que defi ne e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais, as situações de crueldade podem ser defi nidas como: qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais.
Os maus tratos são definidos como: qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais, como por exemplo: impedir a alimentação/abrigo de um animal em situação de rua, envenenamento, arremessar água e objetos contra os animais, ou ameaçá-los com gestos e palavras violentas.
2. Direito à permanência no local estabelecido – embora os animais comunitários não tenham uma residência fi xa junto à família humana, eles possuem o direito de permanecer na localidade onde vivem e receber cuidados por parte dos moradores, sendo que o entendimento da jurisprudência majoritária sobre o tema é no sentido de proibir a remoção dos animais comunitários bem como proibir o bloqueio de acesso dos animais comunitários ao local onde são acostumados a receber alimentação e abrigo, independentemente se esse local é uma via pública ou uma área comum condominial, por exemplo.
3. Direito à alimentação – a liberdade nutricional é um direito conferido a todos os animais, garantido pelas diretrizes de bem- -estar. A violação desta prerrogativa provoca grave sofrimento, portanto, impedir a alimentação de animais comunitários configura maus tratos. É ilegal e abusiva a tentativa de impedir a alimentação dos animais comunitários, seja esvaziando os potes de comida ou tentando coagir os cuidadores a não oferecerem alimento, por meio de notificações, multas ou ameaças.
Giovana Poker Advogada animalista, mestra em Direito com foco em Dignidade Animal e fundadora do escritório de advocacia Giovana Poker – Direito Animal.