O porta-malas do carro e o colarinho da camisa

Quando cheguei naquele condomínio de periferia, confesso que não sabia praticamente nada sobre as dinâmicas de assembleias de condomínio. Embora advogado, não atuava na área condominial. Não tinha ideia do universo de leis, discussões jurisprudenciais, discussões doutrinárias, discussões fervorosas de assembleias. Não sabia da existência de síndicos profissionais, muito menos dos inúmeros eventos que acontecem nesta área. Era um “ignorante condominial”. E talvez por isso fiquei tão surpreso com tudo o que aconteceu a seguir. Uma cliente me pediu que eu a acompanhasse em uma assembleia no condomínio dela. Disse que o povo estava um pouco agitado, revoltado e que às vezes os ânimos se exaltavam. Mas nada demais.
Ela se candidataria à síndica naquela noite, já que a antiga síndica renunciaria na mesma assembleia. E ela tinha medo do grupo da oposição não dar o direito da minha cliente falar, ou mesmo se candidatar. A cliente foi sutil quanto à real situação do condomínio. Muito sutil, eu diria. O condomínio fica no miolo de um bairro distante, periférico. Violento. Percebi quando entrei pela portaria que os ânimos realmente deveriam estar exaltados, uma vez que havia quase 100 pessoas aguardando a assembleia começar, no pequeno e simples salão de festas do local, próximo da entrada. Estavam gritando… Dois grupos opostos: à favor ou contra a síndica atual.
A cliente e ela foi me apresentando para várias pessoas que, aparentemente, a apoiaram naquele dia. Me disse para tomar cuidado com um grupo de rapazes que estava em um dos cantos do salão. Tinham olhares duros, aqueles de dar um calafrio na espinha quando cruza com o seu olhar. Pelo que se sabia, tinham alguma espécie de participação em uma grande facção criminosa local e se colocavam como guardiões do condomínio. Não foi difícil perceber que havia, além da convenção e do regimento interno, um outro certo código de conduta que não estava escrito em lugar nenhum, mas à qual todos se submetiam. Talvez, ditados por aquela turma do canto.
A atual síndica, que renunciaria a seguir, estava nervosa. No microfone, com sinceridade e pesar nos olhos, desabafou: “acho que estão cometendo um grave engano me exigindo a renúncia. Mas, não quero ser colocada num porta-malas de um carro velho, amordaçada, e ficar circulando pelo bairro por cinco horas seguidas, como aconteceu com o síndico anterior! E, por isso, renuncio”. Alvoroço no salão. O advogado do condomínio assumiu o microfone e convocou novas eleições. Eu, tenso, ainda tentava entender se era verídica a história ou se era algum tipo de exemplo ou metáfora o que a síndica tinha falado sobre o síndico no porta-malas; enquanto tentava colocar ordem na assembleia, sem sucesso, o advogado do condomínio, foi confrontado por um rapaz alto, de quase dois metros de altura, forte, que aproximou-se rapidamente e disse: “me dá esse microfone, Dr.” – o advogado disse que não daria e o rapaz, com pouca paciência, insistiu: “me dá, e me dá agora…” – neste momento, talvez por instinto de preservação, pensei comigo que, se fosse comigo, eu entregaria o microfone.
Mas o advogado, muito menor e franzino, recuou, encostando o microfone no próprio peito, e gesticulando energicamente com a outra mão na direção do grande rapaz. Eu não tenho ideia do que foi dito, o microfone não captou. Captou apenas o baque que houve em seguida, quando o jovem rapaz agarrou com suas mãos o colarinho do advogado e o ergueu (se…ergueu) do chão, dizendo algo como “seu filho da mãe, você me cobrou juros abusivos no acordo e quer agora dar uma de arrogante? Me dá logo essa p*&%# desse microfone!”.
Com os pés suspensos o advogado esticou o braço e entregou o microfone, sendo solto e desabando no chão logo em seguida… Enquanto o jovem discursava, minha cliente assumia a dianteira como candidata. O advogado, atordoado, se recompunha. Eu acompanhei a cliente. Ninguém tentou barrá-la. Foi eleita. Ato seguinte à sua eleição, disse que rescindiu com aquele advogado e contrataria meu escritório para atender às demandas jurídicas do condomínio. Algo que não foi mencionado anteriormente, mas que decidiu não contestar. Aplausos e gritos de alguns moradores. “Aviso” gentil da turma do canto que disse que “era melhor andar na linha, senão…” Em 2025 faz 8 anos que representamos os moradores deste condomínio.
Usei tudo o que tinha de ferramentas e conhecimento e busquei, rapidamente, capacitação: desenvolvi minha comunicação e didática, procurei esclarecer e informar, sem desrespeitar, com firmeza e com verdade, cada um dos moradores que nos perguntou sobre algo. Aprendi nesse interregno que aquele que é tratado como ignorante, tende e agir como tal. Aquele que recebe informações, respeito e trabalho consistente, tende a respeitar. Está funcionando.Para mim, e para eles. E ainda bem, pois a história do porta-malas era real. E eu acho que sou claustrofóbico.
PS: em tempo, me lembro do que disse a síndica: “Vai dar tudo certo, Dr. Basta um pouco de coragem, jogo de cintura, respeito e força. Tanta força quanto o colarinho do advogado, que foi erguido do chão, mas o colarinho não rasgou”. Seguimos. Fora do porta-malas. Com a força daquele colarinho.
Cauê Barbosa é Especialista em Inteligência Emocional e Analista de Perfil Comportamental.