Condomínios mistos: uma relação delicada
Convivência e conflitos nos edifícios de natureza mista representam um desafio para os síndicos, mas podem reservar uma enriquecedora experiência para estes profissionais
Michel Chamovitz
Como é a vida e o cotidiano de moradores e administradores dos chamados condomínios mistos, aqueles que reúnem unidades residenciais, lojas e consultórios, ou até mesmo estabelecimentos maiores (bares e restaurantes, por exemplo) no andar térreo? Quais os conflitos mais comuns nessa relação, as principais reclamações e demandas de cada grupo, e qual deve ser a postura do síndico diante dos impasses? Um condomínio misto costuma mesmo apresentar maiores dificuldades aos gestores? Qual é o caminho para todos viverem em harmonia?
Michel Chamovitz é advogado imobiliário e CEO do Grupo API. Ele conversou com a Revista dos Condomínios sobre o controverso tema. “Você certamente já experimentou ou conhece alguém que, nos últimos anos, passou a trabalhar diretamente de casa. Para alguns, o famoso home office, para outros o distance learning. Se por um lado, alguns moradores dos edifícios residenciais começaram a atender seus clientes em sua própria residência, como por exemplo, professores e psicólogos, outros proprietários de edifícios comerciais com salas e escritórios no centro da cidade, a pergunta passou a ser outra: poderiam os frequentadores das salas passar a dormir nos escritórios ou simplesmente alterar a destinação do edifício para moradia?”, inicia nosso entrevistado.
Chamovitz é síndico de dois edifícios residenciais em Copacabana, de outros dois edifícios de salas exclusivamente comerciais. Mas também exerce sua sindicatura em um outro edifício classificado como misto. Segundo ele, o desafio surge exatamente neste cruzamento de interesses residenciais e comerciais. O edifício localiza-se em Copacabana, zona Sul do Rio, sobre um restaurante, uma loja do ramo de sapatos, uma casa de câmbio e turismo, uma doceria, um bazar de ferragens e um bar. Acima deste comércio estão mais de 100 unidades convivendo com todas as experiências, cheiros, barulhos, possíveis e imagináveis. Para ele, não existe qualquer dúvida que o papel de síndico requer atenção e flexibilidade conforme as diferentes destinações. Ele introduz um conceito denominado ‘externalidade’.
É algo que, na maioria das vezes, independe do morador, e pode ser classificado como externalidade positiva ou negativa. No exemplo dele, basta em um prédio misto sua comunidade residencial ter um vizinho barulhento, um bar muito movimentado, uma casa de show ou simplesmente uma floricultura com um jardim lindo e perfumado. Na maioria das vezes as reclamações são em função de odores, ruídos, insetos e movimento de pessoas, todos decorrentes da atividade comercial. Segundo o especialista, um dos pontos principais reside na segurança. O cuidado com as legislações municipais, estaduais, estoques e materiais inflamáveis também merecem toda a atenção.
“As rotinas também são distintas. Enquanto nos edifícios residenciais a demanda se encerra ao cair da tarde, os edifícios comerciais possuem, basicamente, três picos durante o dia. A entrada, o almoço e a saída. Outro ponto bem marcante para o síndico é caracterizado pelas assembleias de condomínio e a forma muito mais prática e assertiva de os proprietários de imóveis comerciais quando comparados com as manifestações emotivas e de relacionamento dos apartamentos utilizados para moradia. Na comunidade mista, existe um agravante que é muito comum. Não é raro uma loja alugar uma sala no edifício para manter seu estoque ou acomodar seu escritório físico acima de seu comércio. Este tipo de procedimento contribui para incrementar o movimento do prédio e, em alguns casos, implica em um aumento no consumo perante as concessionárias locais e as companhias de seguro”.
Hoje, Michel Chamovitz tem seu escritório na Galeria Menescal. Como está lá há mais de 30 anos, pode vivenciar na prática a migração da maioria de imóveis que originalmente eram residenciais, e com o tempo foram se tornando comerciais. Seu entendimento é que houve um aumento pela demanda de prédios comerciais comumente chamados de 24-7. São edifícios que funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana. Um advogado que atende depois do horário, um dentista pronto para atender a emergências sábados e domingos, médicos e psicólogos que atendem depois do expediente dos seus clientes.
“Aos síndicos, cabe maturidade, capacitação e muito jogo de cintura. Se em um edifício com uma única destinação os interesses já não são comuns a todos, imagine em um edifício misto. Com muito estudo, debates, troca de experiência, acredito que todos estarão mais preparados, eis que a maioria dos problemas se repete. Dessa forma, quanto mais debates, estudos, palestras, congressos e pessoas dispostas a compartilhar conhecimento, melhor para todos os profissionais com essa missão tão desafiadora”, sentencia.
Luciana Santiago de Paula
Bom senso acima de tudo
Luciana Santiago de Paula é advogada, síndica profissional atuante desde 2015 e sócia da administradora da LP Gestão Condominial. Realizou cursos de especialização em Direito Condominial na EMERJ e Secovi-RJ. “Em primeiro plano, ao se assumir um prédio misto, há que se ter a consciência de que terá de lidar com elementos típicos de um prédio comercial, em uma edificação que também guarda a finalidade ou destinação residencial. Ou seja, duas utilizações – Comercial e Residencial. Daí o termo ‘misto’. Uma vez que a convivência em um condomínio que guarda somente uma finalidade já é um complicado exercício, quanto mais em prédios ou condomínios mistos, quando, por várias vezes, há o conflito de interesses”, inicia ela, que segue em sua reflexão.
“Podemos dar como exemplo o acentuado desgaste das partes e equipamentos comuns, na hipótese de salas ou sobrelojas, assim como lojas, conviverem na mesma edificação. No nosso caso, há um movimento considerável às ditas dependências, levando em conta a movimentação das sobrelojas, que têm como acesso a mesma portaria. E por falar em controle de acesso, a dinâmica da portaria tem de ser diferenciada. Por vezes, os funcionários têm de fazer contato com moradores, autorizando a subida aos apartamentos e, em outras ocasiões, quando se trata de acesso às sobrelojas, fazendo o controle do acesso do público. São duas rotinas distintas, para utilizações diferentes. Quanto à convivência, alguns conflitos se fazem presentes entre o setor de salas/lojistas, com o setor residencial, como a colocação de mesas na calçada, ruídos e odores provenientes destas unidades comerciais, bem como outros fatos típicos desta atividade. Conciliar horários de obras também se mostra uma tarefa complicada”.
No aspecto do rateio de despesas de manutenção, por diversas vezes há uma oposição, vinda do setor residencial, acerca do fato de que lojas deveriam pagar um condomínio acentuadamente maior, dada a fração e uso, ter também um maior dever de cuidado com o resguardo das normas de incêndio e pânico de suas unidades e, dependendo do formato da convenção, há o questionamento sobre o não pagamento da cota condominial, ou pelo menos o rateio de despesas que digam respeito ao resguardo da edificação, a ver do seguro predial obrigatório, autovistoria, projeto de combate a incêndio e pânico e outros itens que digam respeito à edificação em si, visto que lojas e sobrelojas só existem porque antes existia um prédio onde as mesmas se situam. Isto se dá, ressalte-se uma vez mais, em prédios onde lojas são isentas do pagamento de cotas condominiais, por força de sobreditas convenções.
“Importante também destacar o cuidado ao se segurar um condomínio misto, visto que empresas seguradoras impõem cláusulas específicas de resguardo, típicas de um condomínio com características comerciais. Enfim, todo um exercício de atendimento às normas, e sobretudo bom senso, elemento primeiro a uma boa convivência” pontua Luciana de Paula.
Orlando Segatti
Uma experiência desafiadora e enriquecedora
“A convivência dentro da unidade condominial é uma constante interação humana e, com cada vez mais os espaços sendo suprimidos nas grandes cidades, os incorporadores pensaram em unir trabalho, lazer e moradia com os condomínios chamados de ‘mistos’. São chamados desta forma justamente, porque, em sua incorporação já são previstas áreas comerciais e residenciais. Logo, o condomínio não é somente para uso estritamente residencial como via-se ordinariamente. O cotidiano destes tipos de empreendimentos tem sido muito organizado, pois, como na incorporação do condomínio, houve o arquivamento da minuta da convenção coletiva e regulamento interno, já prevendo as devidas regulamentações, em geral a convivência tem sido agradável, porém, toda regra comporta sua exceção”, afirma Orlando Segatti, advogado e presidente da Comissão de Direito Imobiliário da 40ª Subseção OAB/SP.
No entanto, a convivência nem sempre é harmoniosa. Algumas vezes as situações não são respeitadas, ou outras não são previstas. Depende também da forma que foi feita a construção, pois existem empreendimentos em que os imóveis residenciais literalmente misturam-se com os comerciais como, por exemplo, em serem todos construídos na mesma torre, utilizando a mesma entrada e saída. Existem outros em que as portarias são diferentes. Contudo, as torres são separadas fisicamente. Há casos em que existem bares e restaurantes no topo do edifício, chamados popularmente de “rooftops”, e também há aqueles que se encontram no térreo, com acesso do seu público para a rua.
“Os problemas são os dos mais variados, e vão desde cobrança de cotas condominiais incorretas, pois, ao exemplo dos espaços comerciais como bares e lojas localizadas no térreo, com frente para a rua, não podem contribuir para os rateios de despesas de manutenção de elevadores, portaria, e outros dos quais não se beneficia. Há resistência destas na participação de obras comuns pois, geralmente entendem serem ‘independentes’, mas, no entanto, utilizam-se muitas vezes do mesmo AVCB (Auto Vistoria do Corpo de Bombeiros), tubulação de água, esgoto, energia elétrica”, diz ele, que dá mais exemplos.
“Outro problema são os relativos a barulhos e horários de fechamento, especialmente para bares e restaurantes, que algumas vezes vão até após o horário permitido pelo regulamento. Existem também, nos casos destes estabelecimentos ficarem localizados nos últimos pavimentos, onde, se compartilhado o mesmo elevador com os moradores, os frequentadores alcoolizados podem causar problemas para as unidades residenciais da torre. Há também os casos em que, para aqueles que compartilham da mesma portaria/recepção, problemas oriundos de público dos conjuntos comerciais, onde podem existir grandes fluxos de pessoas, causando conflito entre condôminos das unidades residenciais e comerciais”, aponta.
Em todos esses cenários, diz Orlando Segatti, o síndico, primeiramente deve-se manter firme e ao mesmo tempo empático com o tema guerreado. Mas sempre deve seguir dentro dos preceitos legais, das regras internas e, especialmente deve possuir uma comunicação não violenta, e buscar entender e escutar cada parte, de forma neutra, e por fim tentar pacificar o conflito, orientando, mediando e encontrando uma solução para que não haja prejuízo a todos os envolvidos.
“O condomínio misto, por sua própria natureza, tende a ter uma administração diferenciada dos residenciais. Porém, não é nada tão diferente que não possa ser administrado, aliás, é uma rica experiência para o síndico que, se bem embasado, orientado com os instrumentos, parceiros e prestadores corretos, torna-se tão prazerosa quanto qualquer outro condomínio. Por fim, para que todos os conviventes possam ali manterem-se no dia a dia de forma amistosa, é recomendável que sempre esteja atualizado o regulamento interno, que o síndico passe circulares e comunicados orientativos recorrentes, que conheça pessoalmente cada um dos condôminos e entenda a realidade de cada um, pois, com isso, poderá encontrar a melhor medida para a solução de qualquer entrave”, diz Orlando, pós-graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito e com diversos cursos de extensão na Área Imobiliária, especialmente em Direito Condominial.
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