Mais agressões em condomínios: até quando?

A pedido da REVISTA DOS CONDOMÍNIOS, quatro especialistas discutem a razão de tamanha repetição de casos de intolerância. E apontam saídas possíveis para esse grave problema

 
MARISA DREYS

Mais casos flagrantes de agressões em condomínios no Rio de Janeiro e Goiânia. Porteira de um prédio no Flamengo, Zona Sul carioca, foi insultada e agredida no final de setembro por um morador, de forma covarde, e tudo foi registrado. Na capital de Goiás, no mesmo mês, um homem foi preso após espancar o zelador, e ser flagrado pelas câmeras de segurança no ato da agressão. Casos estão acontecendo de forma reiterada. Qual a explicação para isso? Qual o sentido de tamanha agressividade gratuita? Quais medidas protetivas síndicos e funcionários podem adotar?

Para nossa primeira entrevistada, é fato que os conflitos que vêm ocorrendo dentro dos condomínios têm chamado atenção da mídia. E cada vez é mais comum a veiculação de notícias envolvendo crimes praticados contra síndicos e até mesmo ações violentas entre condôminos. “O condomínio edilício envolve o conceito da propriedade individual, de domínio exclusivo de cada proprietário e o conceito de domínio plural, que se caracterizam como as áreas comuns do condomínio, das quais todos são proprietários na proporção de suas frações ideais. Assim, existe uma relação diária e intensa no compartilhamento de uso desses espaços comuns: elevadores, garagens, portarias, espaços de lazer, corredores de acesso, entre outros”, pontua Marisa Dreys, advogada pós-graduada em Direito Imobiliário, especializada em Direito Criminal.

Para ela, o uso compartilhado desses espaços comuns no âmbito privado – condomínio – segue a mesma lógica de convivência dos espaços públicos, no sentido de que ambos são regulados por normas de conduta. No caso dos espaços públicos, as leis presentes no ordenamento jurídico pátrio e nos condomínios, além destas, também a Convenção e o Regulamento Interno. A aplicação dessas normas nas contendas cíveis judicializadas é feita por um juiz de Direito e, nos casos de crimes, pela autoridade policial em um primeiro momento.

“Embora a figura do síndico e da convenção de condomínio esteja prevista no Código Civil, atribuindo a ele a aplicação das normas internas do condomínio, sejam estas organizacionais ou punitivas, grande parte dos condôminos não a respeita. A noção equivocada de propriedade por parte de alguns faz com que acreditem que suas condutas podem ser totalmente livres nas unidades individuais. E que as áreas comuns podem ser utilizadas considerando apenas a satisfação de suas necessidades individuais. Essas crenças que se refletem no modo de agir de condôminos infratores, alguns contumazes, não raro os levam a atitudes violentas, normalmente direcionadas aos síndicos, funcionários ou a seus vizinhos, quando têm seus desejos ou condutas reprimidos em detrimento do bem-estar de toda a comunidade”, lamenta.

Segundo a especialista, essas atitudes violentas podem ser contra coisas nas áreas comuns ou contra pessoas. Danos ao patrimônio, agressões contra os gestores ou vizinhos pela prática de crimes contra a honra – injúria, calúnia, difamação ou mesmo pala prática de lesões corporais em diversos graus, que tanto temos visto na mídia nos últimos tempos. É importante que, diante da prática de qualquer tipo de crime, haja reação. Registro policial e, consequente, ajuizamento de ações criminais quando for o caso – nos crimes contra a honra – e acompanhamento nos casos de crimes de ação penal pública incondicionada.

“A responsabilização penal possui uma dimensão pedagógica importante no condomínio, deixando claro que a violência nunca é uma opção. E que qualquer pessoa que venha a agir dessa forma responderá por seus atos no âmbito criminal. Não há medidas protetivas específicas contra a violência geral em condomínio, como existem em previstas na Lei Maria da Penha. O que se pode fazer preventivamente é buscar fortalecer as relações de sociabilidade entre condôminos e gestão. Entende-se por relações de sociabilidade não as relações que se estabelecem de maneira rasa apenas pelo uso compartilhado de espaços, e sim a profundidade dos laços que se estabelecem entre as pessoas que frequentam o mesmo ambiente.”

Ela aposta que é possível promover esse aprofundamento através do fortalecimento de laços de confiança, por exemplo, entre gestores e condôminos através de ações simples. Alguns exemplos podem ser a atenção no atendimento ao condômino, a transparência das contas prestadas, o treinamento de funcionários para que prestem um melhor serviço, o incentivo à participação de moradores em campanhas de solidariedade internas e externas. “Na contramão disso tudo, comportamentos desviantes sempre estarão presentes nas sociedades complexas. E o enfrentamento deve ser efetivo, com uma gestão transparente e eficaz, tomando providências diante de infrações às normas ou crimes ocorridos.”

CLÁUDIA SARMENTO

Retratos de uma sociedade doente

“A violência sempre existiu. Entretanto, seu crescimento nos últimos tempos tem sido alarmante. E o aumento dessa violência em condomínios tem chamado a atenção e trazido preocupação aos administradores. Casos de agressão, como o da síndica Dayse de Souza Ribeiro, de 56 anos, agredida covardemente por um morador em um condomínio na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, enquanto estava ao celular, com tapas, socos e pontapés têm se tornado recorrentes. O agressor já tinha discutido com a vítima antes, devido à insatisfação com fechamento da academia para manutenção. Motivo pelo qual a vítima relatou à polícia ser o motivo da agressão”, descreve Cláudia Sarmento, psicanalista, terapeuta e coach de mulheres formada pela academia do Dr. Djalma Pinho, PHD em coaching withs Spiritual Intelligence.

Mas o que explica tanta violência e intolerância nos condomínios? Cláudia nos responde. “Vivemos em uma sociedade que, por falta de informação, valorizou por anos muito mais os bíceps – aliás, motivo pelo qual a síndica foi agredida – que o cuidado com a saúde mental e emocional. O que gerou nessa sociedade pós-pandemia uma realidade jamais vista. Um alto desenvolvimento de doenças psicossomáticas. Estresse, depressão e desejo de suicídio atingem, hoje, todas as classes e faixas etárias. Até mesmo crianças têm sido atingidas, o que nos faz entender que não existe saúde física sem saúde mental e emocional.”

Para ela, uma sociedade doente emocionalmente torna-se intolerante no âmbito familiar e social. Com a pandemia de Covid-19, a saúde mental foi duramente atacada pelas suas consequências – mortes e sequelas, em especial. A instabilidade profissional, a queda na renda familiar, o conflituoso convívio causado pelo isolamento, trouxeram a uma boa parte da população uma nova forma de se comportar e socializar. Hoje, mais do que nunca, um motivo banal pode ser o estopim para uma reação ou um ato violento.

“Nosso cérebro tem uma estrutura no sistema límbico chamado amígdala, que é responsável pela resposta de quando nos sentimos agredidos. Com essa área estimulada, sentimos medo ou raiva, o que nos induz a uma reação. O que freia essa ação de resposta às ofensas está em outra área no nosso cérebro, nos lobos frontais e no córtex pré-frontal. Eles fazem com que tenhamos juízo… É por isso que sempre oriento que, em meio a uma discussão mais calorosa, que se faça o exercício de observar a respiração, contando até 30 (na verdade, o famoso conte até dez. Precisamos de apenas 30 segundos para que o cérebro (córtex) organize as emoções e, assim, a razão sobrepõe a emoção. A vontade pode até ser de… Mas não faço, conseguindo medir as consequências de meus atos”, explica Cláudia Sarmento, com a definição de que “ter saúde emocional é ter paz consigo e com próximo”.

Viver em condomínio requer jogo de cintura. Moradores, síndico, funcionários, todos precisam entender qual é a sua parte para que tudo transcorra da melhor maneira possível, onde direitos e deveres devem ter a mesma importância. Um condomínio só será bem-sucedido se seus moradores entenderem que a boa convivência consiste em manter práticas e comportamentos que não incomodem o outro morador. Ou seja, meu vizinho deve ser respeitado.

“Em um tempo em que muito se fala em empatia, que é se colocar no lugar do outro, vale lembrar que empatia sem compaixão para nada serve. Informações e orientações sobre o bom convívio e a importância do cuidado com a saúde mental e emocional, fixadas nos elevadores e áreas de convívio comum, podem trazer maior noção de responsabilidade aos moradores. Como nos diria Freud, pai da psicanálise: ‘a violência é a antítese da civilização’, finaliza Sarmento, também diretora do instituto kaKau Ched, que atende mulheres e crianças vítima de violência doméstica.

LENIN PIRES

Um olhar acadêmico sobre a questão

Antropólogo, professor do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos nesta mesma instituição de ensino superior, Lenin Pires complementa essa conversa. “Há estudos sociológicos que focalizam as relações sociais presentes na organização de condomínios. Estudos desenvolvidos a partir de observação direta que demonstram o cotidiano do que ocorre em condomínios, em diferentes áreas da região metropolitana do Rio de Janeiro. As leituras que fiz, bem como minha própria experiência participando destes arranjos, me permitem afirmar que uma característica marcante é a dificuldade em se coadunar a gestão de condomínios e práticas democráticas.”

Segundo ele, isso se dá particularmente na participação voluntária das pessoas, bem como no respeito às regras consagradas em convenções, regimentos ou mesmo na legislação ordinária. Não é por acaso que se tornou crescente, nas últimas décadas, que os condôminos, em função dos conflitos existentes, cada vez mais optem por estabelecer contratos com administrações terceirizadas e profissionais.

“Nas experiências que vivenciei, com honrosas exceções, isso não solucionou satisfatoriamente alguns problemas como transparência nos critérios com gastos, estímulo à participação das pessoas e, principalmente, a assunção pelos condôminos de responsabilidade com coisas que lhe dizem respeito. Em outras palavras, há muita dificuldade em se internalizar a ideia de que o interesse público nasce, literalmente, dentro de casa. Assim, há muita dificuldade de se tecer, na administração dos condomínios, uma pedagogia para a democracia.”

Para Lenin, isso ocorre em razão de um elemento que é de difícil solução: a suspeição sistemática que as pessoas parecem dirigir a quem quer que esteja à frente dos processos de administração. Suspeição, porém, que não gera responsabilidade de controle. Antes, o contrário; quem gere um condomínio tende a ser abandonado à própria sorte, se virando para dar conta de resolver os problemas que são de todos. “Isso é problema do fulano. Ele foi eleito para dar jeito nisso” é uma das frases mais ouvidas.

A ausência de mecanismos eficazes de controle, que se amparem na participação social das pessoas em assuntos de seu interesse, parece ser parte de uma tradição política que está para além dos condomínios, criando ‘culpados’ por coisas julgadas ou construídas como ‘erradas’. Consequentemente, onde não há uma tradição de escuta e diálogos desarmados para lidar com os problemas, sobrando suspeição e preconceitos sobre quem se mostra ‘interessado’ em ser administrador ou síndico, sobra incompreensão e predisposição para a violência. “Muitas vezes fazendo pontificar aspectos mais gerais, presentes em uma sociedade desigual como é a brasileira, como o racismo, o machismo, a misoginia, a intolerância religiosa, entre outras possibilidades”, lamenta.

Segundo nosso entrevistado, as autoridades instituídas deveriam dirigir um olhar mais atento aos conflitos que ocorrem em condomínios, assim como os pesquisadores e formuladores de políticas públicas. “Parece-me este um bom âmbito para que, a partir de práticas profissionais distintas – da área da psicologia à segurança pública, passando pela educação – seja possível estabelecer parâmetros de desenvolvimento de tecnologias sociais voltadas para promover e aprimorar o sentido de cidadania e, com ele, o próprio ideal democrático.

CHRISTIANE ROMÃO

Informação e treinamento

Christiane Romão é psicóloga e síndica profissional, e atendeu ao convite feito pela REVISTA DOS CONDOMÍNIOS. Ela inicia sua participação com uma citação de Winnicott, de 1939. “Amor e ódio constituem os dois principais elementos a partir dos quais são construídas as relações humanas. Mas amor e ódio envolvem agressividade. Por outro lado, a agressão pode ser um sintoma de medo. De todas as tendências humanas, a agressividade, em especial, é escondida, disfarçada, desviada, atribuída a agentes externos, e quando se manifesta é sempre uma tarefa difícil identificar suas origens.”

Para Romão, ao falarmos de agressividade, na visão da psicanálise, imediatamente lembramos, de modo quase automático, do texto de 1929, ‘Mal-estar na Civilização’, no qual Freud reconhece na agressividade inata do homem – o principal fator de ameaça à vida em sociedade. “A violência que está sendo publicada diariamente nos noticiários foca, muitas vezes, somente na agressão física. Porém, caracterizar e entender a violência psicológica é tão importante quanto. Atos de humilhação, desvalorização moral ou deboche público, assim como atitudes que abalam a autoestima do colaborador ou do síndico, podem desencadear diversos tipos de doenças, tais como depressão, distúrbios de cunho nervoso, transtornos psicológicos, entre outras. E onde está o síndico quando ele não é a própria vítima, e sim a sua equipe?”, questiona ela, que segue em sua exposição.

“O que estamos vendo, de forma reiterada, é uma agressão hostil, um comportamento que busca causar danos ao outro, independentemente de qualquer vantagem que se possa obter. Seguindo essa linha de pensamento, podemos entender que a agressividade é um divisor de formas de conduta ou personalidade, pois o oposto é uma pessoa que vive em lamúria ou autocomiseração. Precisamos falar e lutar contra isso. Procurar caminhos para inibir essas práticas. E isso só se dá com união entre toda a comunidade condominial. Não podemos achar normal os repetidos atos de violência, a agressividade desequilibrada, que vem gerando ambientes doentios no seu interior e exterior. Essas repetidas situações geram medo, tensão, estresse, tristezas, ressentimentos, mágoas, culpas, inseguranças… Sentimentos que estão na origem da grande parte das doenças físicas”, alerta.

Para evitar e tratar tais questões, são recomendadas campanhas de conscientização, assim como palestras internas sobre assédio moral, tanto para os condôminos quanto para funcionários. “O síndico precisa ter inteligência emocional, ser mais mediador, promover a conscientização entre os moradores e mostrar que uma eventual atitude ilícita pode gerar prejuízos para quem a cometer ou para o condomínio como um todo. Síndico, mantenha a postura. Se possível, mantenha uma postura firme, segura e imparcial ao aplicar as penalidades, advertências ou multas, evitando favorecimentos. Treine e oriente os funcionários para lidar com situações desse tipo, dê condições de trabalho à equipe. Não deixe os funcionários expostos a situações de abordagens que podem ser verificadas muitas vezes pelas câmeras de segurança”, aconselha.

Christiane Romão afirma ainda que, por melhor que seja a intenção de manter uma medida educativa para se cumprir o regimento, durante uma festa, ou em situações nas quais o condômino não tem condições de uma interação saudável, o melhor é se afastar até que os ânimos se acalmem e aplicar as medidas cabíveis sem ficar vulnerável. Em caso de agressão, é preciso que o síndico possa acompanhar o funcionário até à polícia e registrar um Boletim de Ocorrência. Junto ao condomínio, é recomendável que o síndico possa reportar imediatamente aos conselheiros e verificar junto à Convenção ou Regimento interno quais são as providências a serem tomadas. Pela gravidade dos fatos, e se o condomínio já tiver participado de outras ocorrências, ele poderá ser classificado como ‘condômino antissocial’.

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Marisa Dreys

marisa@arechavalaadvogados.com

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Lenin Pires

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