Condomínio desorganizado: o desafio de arrumar a casa

Muitas das vezes, de tão caóticos, os condomínios parecem exigir superpoderes de seus gestores. Mas, acredite, há meios de cumprir essa tarefa, ainda que ela pareça inatingível

 
FERNANDO MAIA
RICHARD GUEDES

Você pode até nunca ter assistido a sequer um dos filmes. Mas, com certeza, conhece a franquia ‘Missão Impossível’, estrelada pelo astro Tom Cruise. A vida de alguns síndicos reserva surpresas e desafios dignos de um roteiro de cinema das grandes produtoras de Hollywood. Contas atrasadas, dívidas elevadas, administradores afastados, contabilidade em desalinho, processos trabalhistas, condôminos desagregados… Enfim, condomínios absolutamente desestruturados. Arrumar este cenário de caos e colocar a casa em ordem pode até parecer algo inatingível. Mas saiba que, com técnica, esforço e a colaboração de todos, é uma tarefa absolutamente viável. Quer ver só?

“Uma vez, fui convidado por uma colega de curso para disputar um cargo de síndico externo – prefiro essa nomenclatura, uma vez que a profissão ainda não é reconhecida, tampouco regulamentada – no condomínio onde ela morava, há alguns anos. Por uma questão de ética, vou me furtar a declinar o nome desse condomínio. Lá compareci uma semana antes da reunião da assembleia que ia acontecer para eleição. Era um condomínio antigo, da época da Cohab, composto por pessoas simples e leigas em termos de legislação condominial, com exatas 90 unidades”, relembra Fernando Maia, advogado do mercado imobiliário e de famílias, pós-graduado em Direito Imobiliário pela PUC/Rio, consultor condominialista e mediador imobiliário do quadro do Secovi/Rio.

Ele lembra que, uma vez topado o desafio, veio o primeiro confronto: a eleição. Marcada por brigas e um síndico que desempenhava a função há cerca de dez anos e queria se perpetuar no poder. Por uma margem apertada, Fernando sagrou-se vencedor, graças aos votos daqueles que queriam retirar o então gestor do cargo, pois não aguentavam mais seus atos autoritários, além da falta de explicações de onde se gastava a arrecadação. No dia seguinte à votação, Fernando Maia recebeu as chaves, jogadas em cima da mesa da administração, com um grunhido de “agora é contigo”. Logo percebeu que ali, naquele momento, começava uma oposição. E nem só da parte do antecessor, como também de seus antigos aliados.

“É fato notório que muitos condôminos não percebem que, quando um condomínio está em ordem, bonito, arrumado, limpo, pintado, com tudo funcionando, as manutenções em dia, os seus imóveis também se valorizam. Isso é claro como água, mas como é difícil incutir isso na cabeça de alguns. Meu primeiro ato, depois de percorrer todo o condomínio e falar com todos os funcionários, muitos fiéis ao antigo síndico, foi verificar as finanças. Encontrei diversas irregularidades, manutenções atrasadas, caixas d’água e cisternas por limpar, e elevadores com barulhos tenebrosos, lembrando mais um trem fantasma que um meio de se locomover verticalmente. E mais: contas de despesas ordinárias pagas com cotas extras, com fundos de reserva e de obras: uma verdadeira bagunça. Vistos e carimbos de uma ‘firma’ que se intitulava administradora, e cujo responsável, pasmem, nem CRC tinha. Nem preciso falar que o condomínio era deficitário”, enumera.

Diálogo em busca de soluções

Passado o impacto inicial, e após alguns dias de estudos em cima das contas, Fernando convocou o conselho, na linha de quem sempre gostou de trabalhar em conjunto, em uma gestão participativa. Logo começaram a traçar planos de recuperação para aquela situação. A inadimplência, por exemplo, beirava os 25% das unidades, com a conivência do ex-síndico para seus apadrinhados, o que tornava quase impossível qualquer tipo de administração. Foi traçada uma estratégia de recuperação de crédito. Era isso ou restava partir para uma garantidora, o que foi descartado.

A missão prosseguiu com conversas com os funcionários e readequação dos horários para que não trabalhassem em horas extras. Claro, os que estavam acompanhando o ex-síndico reclamaram. Houve então o trabalho de convencimento: foi explicado aos resistentes que era preciso aceitar o novo modelo ou não haveria alternativa que não a demissão – decisão que Fernando Maia detesta tomar, mas que cumpre sempre que imprescindível. Na sequência, ocorreu a convocação dos inadimplentes para tentar fechar acordos, mostrando a todos eles que era muito mais vantajoso optar por uma boa negociação do que uma ação judicial, onde todos saem perdendo. Os condôminos inadimplentes, muitas das vezes, perdem o próprio imóvel. E o condomínio ‘séculos’ preciosos de gastos e custas processuais.

“Pesquisei no mercado outras administradoras que topassem o desafio de nos bancar por um curto período que fossem sérias, com recomendações de colegas, pois creio ser muito importante a interação com grupos de síndicos para troca de experiências. Até hoje agradeço a vários pela assistência que me deram… Enfim, que fossem o que nós chamamos de ‘nosso braço direito’ – sendo que eu, naquele momento, estava mesmo precisando do direito e do esquerdo. Encontramos uma, depois de rigorosa seleção, onde escolhemos a que melhor se adequasse ao nosso perfil, sem detrimento de outras que se mostraram muito eficientes e eficazes. Porém, repito: escolhemos a mais voltada ao nosso perfil”, conta ele, que segue em seu relato.

“Quem faz gestão condominial começa a perceber, logo de início, que um condomínio nunca é igual ao outro. Cada um tem sua personalidade. São como filhos, que nós amamos de modo igual, mas cada um com sua individualidade. Feita essa parceria e nos livrando da antiga administradora, comecei a colocar nos eixos o dia a dia do condomínio. Aos poucos, alguns dos condôminos que antes eram incrédulos começaram a ver que sou imparcial, como temos que ser. Que não dava vantagem a ninguém em especial, que um ‘não’ meu era equivalente a 90 ‘nãos’. E um ‘sim’ equivalia ao mesmo tanto. Equidade, equilíbrio, transparência, ética e hombridade, sempre. E muito estudo, muita dedicação, atualização, cursos. Essas são e sempre foram minhas virtudes. Os defeitos não vou enumerá-los aqui, mas posso dizer dois ‘de cara’: sou chato e persistente!”

A quebra das resistências

Aos poucos, o novo síndico foi percebendo que os condôminos começaram a lhe dar um voto de confiança em relação às atitudes firmes que estava tomando, uma vez que muitos estavam acostumados à antiga toada, onde se passava a mão na cabeça dos devedores, e muitas das dívidas eram perdoadas. Os valores arrecadados não retornavam em forma de benfeitorias. Não havia provas, não havia documentação que ensejasse uma auditoria, mas havia sérios indícios de fraudes, tanto por conta da administração anterior quanto pela antiga administradora.

Cumprido todo esse processo, o resultado demorou um ano ou um pouco mais, mas apareceu. Com a grande e imprescindível ajuda do conselho parceiro, que estava mais para um conselho consultivo do que fiscal, embora exercesse ambas as funções com esmero, o condomínio foi colocado nos eixos, financeiramente, com as manutenções em dia: elevadores, bombas e sistema hidráulico, incêndio, férias vencidas, sistemas e caixas d’água limpas, portaria asseada, funcionários com uniformes adequados, Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros, tudo passou a estar ok. A mudança foi tanta que provocou até o melhor comportamento daqueles condôminos ‘difíceis’, que repeliam a nova gestão.

“Claro que tive a oposição ferrenha do ex-síndico, chegamos quase às vias de fato, uma vez. Mas acho que ele se intimidou com minha determinação. E justiça seja feita: aqueles membros do conselho foram sensacionais e estão em minhas orações todos os dias. Sem eles, eu não seria capaz de superar as dificuldades impostas por oposições e calúnias, o que prova que, quando a equipe anda bem, normalmente o resultado acompanha. E o maior mérito do síndico/gestor está em saber trabalhar com sua equipe, fazê-la crescer, render e desfrutar dos resultados, enaltecendo-a e valorizando-a sempre.”

Hoje, Fernando Maia não é mais síndico daquele condomínio, o que nem de longe quer dizer que tenha ocorrido algum problema nesta relação, ou que laços de amizade tenham sido rompidos. “Acho que já cumpri meu papel. Mas, até hoje, sou convidado para algumas festas – as de Natal e de São João são as mais bonitas, enquanto a das crianças é a mais divertida. Compareço sempre que posso. Isso não há dinheiro que pague. Tenho a exata dimensão que a função de síndico, embora difícil, desgastante, antipática por vezes, e que ninguém quer, é gratificante. Com a consciência tranquila, posso dizer que hoje aquele condomínio tem suas unidades valorizadas, muito mais que antes, pois a casa está arrumada”, garante ele, também líder da Comissão de Condomínios e Síndico 5 Estrelas pela Gabor RH/Fundação Vanzolini-SP.

Uma espécie de maestro

Contador executivo especializado em Controladoria Pública pela Uerj e fundador da RGcont Finanças e Condomínio, Richard Guedes faz uma analogia da missão dos síndicos. “Um gestor profissional deve ter bem definida a estratégia de entrada em um condomínio. O líder de um empreendimento precisa agir como um maestro que faz os músicos se unirem e atuarem como uma orquestra afinada e harmoniosa. Com seus gestos, transmite o andamento, ritmo e expressividade. Como líder, precisa envolver e estimular a todos nos ensaios, para que cada um obtenha sua melhor performance individual e em grupo”, acredita.

Assim, em um condomínio machucado por antigas gestões, o primeiro passo a ser dado pelo novo síndico é a execução do mantra estratégico: Onde estamos? Para onde vamos? Como chegaremos lá? “Imediatamente, faço uma reunião informal com os moradores, com o objetivo de responder a essas perguntas. Comparo a demanda reprimida deles com o laudo de vistoria de diagnósticos, elaborado por um engenheiro. Para decidir o que é mais importante uso a Matriz de SWOT (FOFA), que analisa Forças, Fraquezas, Oportunidades e Ameaças do negócio”. Funciona assim: o que é positivo no presente é uma Força; e o que é positivo no futuro, uma Oportunidade. O que é negativo no presente é Fraqueza; e o negativo no futuro, uma Ameaça.

Após essas identificações, Richard convoca uma assembleia para uma lista de prioridades de curto prazo, com execução em até seis meses. “Uso os pilares da minha administradora: Melhoria Contínua, mesmo estando tudo perfeito; Atitude de Dono, agindo como proprietário do apartamento que quer vendê-lo com o melhor preço possível e rapidamente; Disciplina Operacional, com os colaboradores respeitando os comandos e se destacando pela educação; e Empatia no Atendimento, entendendo os moradores e pedindo que façam o registro de sua solicitação no livro de ocorrências.”

A missão, para ser cumprida a contento, depende ainda da identificação da saúde financeira do condomínio. “Nesse ponto, é preciso comparar o orçado com o realizado, verificando mensalmente o aumento dos recursos totais à disposição. A gestão financeira é feita de planejamento, com a cobrança de inadimplências. Não existe realização de melhorias sem uma boa formação de preço no boleto de contribuição. Isso é matemática aliada à tomada de decisões, aprovadas em assembleias. A ideia de que condomínios não podem ter sobra de dinheiro em caixa coloca o patrimônio dos moradores em um patamar de desvalorização imobiliária, pela falta de recursos para futuras melhorias”, resume Richard Guedes, que também é membro da Comissão de Contabilidade Condominial do CRC-RJ.

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