Violência doméstica: um basta também nos condomínios!

Leis estaduais determinam papel estratégico dos síndicos no encaminhamento das denúncias de agressão

 
Eliana Barboza

Basta assistir aos telejornais ou navegar pelos sites de notícias para constatar uma triste realidade: os casos de violência doméstica, alguns deles levados ao extremo do feminicídio, se proliferam por todo o país, indistintamente, por todas as classes sociais. As respostas do poder público começam a surgir – e muitas delas impactam diretamente a vida daqueles que compartilham espaços comuns em suas moradias. Ao menos 15 estados e o Distrito Federal já implementaram leis sobre Violência Doméstica nos condomínios. “Todo esse trabalho está diretamente ligado ao fato de nosso país ser signatário de Tratados e Convenções com mais de 150 países que mobilizam ações contra a violência, além do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, lançado em agosto de 2007 e ratificado em 2015”, pontua a advogada e psicóloga Eliana do Nascimento Barboza.

Em São Paulo, a promulgação da Lei nº 17.406/2021, de 15 de setembro, fez o estado entrar no rol das unidades da federação mais combativas. Ela obriga os síndicos e administradores a denunciarem a violência doméstica e familiar em condomínios residenciais ou comerciais. A comunicação dos episódios de violência em curso deverá ser feita de imediato, por ligação telefônica ou aplicativo. Nos casos já ocorridos, a comunicação poderá ser feita por via física ou digital no prazo de 24h após a ciência do fato. Além disso, a lei prevê que os condomínios deverão afixar cartazes, placas ou comunicados com informações da lei nas suas áreas de uso comum.

“A função de síndico, principalmente a partir da pandemia, passou a ser, além de gestor de patrimônio, um administrador de pessoas. Em função do isolamento, surgiram inúmeras adversidades nas minicidades, como são chamados os condomínios atuais. O isolamento trouxe não só o trabalho home office, mas também problemas familiares e de vizinhança. É chegado o momento em que a missão do síndico não pode mais ser atribuída a amadores, já que ele deve desenvolver suas habilidades em gerir conflitos, no trato com funcionários, desenvolvendo até a caraterística de saber escutar, a famosa ‘escuta ativa'”, defende Eliana, presidente da Comissão de Assistência às Vítimas de Violência Doméstica da OAB Niterói e coordenadora da Diretoria de Mulheres OAB/RJ.

Ela avalia que o síndico hoje deve conhecer não somente a legislação, mas também entender como funciona a rede de enfrentamento à violência doméstica, os tipos de violência, e saber identificar se aquela discussão está ultrapassando limites, pois o novo ditado nos mostra que ‘em briga de marido e mulher, eu meto a colher!’. “Pode até parecer mera intromissão na vida alheia, mas não é mais, pois a denúncia pode salvar uma vida. Atualmente, toda e qualquer pessoa pode e deve denunciar o ato de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos, o que pode ser feito de forma anônima pelo telefone 180. Além disso, o síndico deve ter sempre à mão outros telefones de emergência, como o 190 (Polícia) e das DEAMs (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher)”.

Também especialista em Gestão de Direito Imobiliário, corretora e avaliadora de Imóveis, ela ressalta que, se qualquer um pode denunciar um ato de violência doméstica, o que a legislação fez foi apenas regulamentar para que o síndico, que é a figura representante do condomínio, ao estar ciente, faça essa denúncia por telefone ou por via digital, acessando o aplicativo da Delegacia Legal e comunicando o fato. E sempre fornecendo o maior número de informações sobre a vítima e seu agressor, facilitando assim a identificação e auxiliando com dados a futura investigação. Também os funcionários devem ser treinados para agir em certas situações.

“Importante frisar que o poder público, com o lançamento da Lei nº 17406/2021, não exige nem transfere para o síndico o poder de polícia, nem isenta toda a sociedade de denunciar”. Apenas elenca o síndico como pessoa que deve agir para não ser omisso. Segundo a referida lei, não existe penalidade ao síndico. No entanto, a responsabilidade de denunciar está em cada um de nós, cidadão ou cidadã que deseja viver em uma sociedade melhor. “Por fim, nos resta entender que a luta contra esse crime é diária, e que toda a sociedade precisa estar engajada para a criação de um futuro melhor para nossos filhos e netos”.

Marisa Dreys

Lei nº 17.406/21 amplia a visibilidade para o problema

Advogada pós-graduada em Direito Imobiliário e especializada em Direito Criminal, Marisa Dreys também falou sobre o tema: “A Lei nº 17.406/21 é um marco legal importante, dotada de dimensão social cujo alcance está para além da possibilidade de investigação e punição dos agressores, através das denúncias recebidas. Ela amplia a visibilidade do problema da violência doméstica e familiar e, embora seja prioritariamente voltada para o síndico, convida toda a comunidade condominial a ser mais sensível e atenta quanto a possíveis crimes que ocorrem, na maior parte das vezes, em ambientes privados, onde a possibilidade de defesa da vítima é reduzida.”

Segundo ela, a afixação de cartazes nas áreas comuns, publicizando o conteúdo da lei e as providências que serão tomadas diante das possíveis ocorrências no condomínio, funciona como forte fator de inibição ao agressor, visto que o fará saber que, uma vez observado por vizinhos, síndicos ou funcionários, ele poderá ser denunciado. “Cabe destacar que a nova lei prevê, logo em seu artigo primeiro, que a denúncia pode ser feita diante de ‘ocorrências ou indícios de episódios de violência doméstica’, o que significa que não é obrigatória a certeza absoluta. Havendo indícios, estes serão suficientes para a denúncia. Além disto, a denúncia não precisa conter indicação da pessoa do agressor ou do agredido, apenas o fornecimento de dados que possam contribuir para a identificação da possível vítima e possível agressor. A investigação ficará a cargo da autoridade policial”, reforçou.

Marisa destaca que o artigo 4 da Lei prevê que caberá ao Poder Executivo a regulamentação da mesma “em todos os aspectos necessários à sua efetiva aplicação”. A regulamentação poderá prever desde a obrigatoriedade da forma de apresentação da denúncia até o elenco de autoridades a serem informadas, providências posteriores, entre outros pontos. Todavia, o fato de ainda não haver a regulamentação não significa que não esteja em vigor; apenas que ainda não foi definida a forma de sua aplicação.

“Assim, a orientação para os síndicos é que procurem receber as denúncias dos condôminos por escrito em documento separado, fora do livro de ocorrências, cuja consulta é pública. É uma providência que evita constrangimentos. Além disso, receber a denúncia por escrito, formalizada, resguarda o síndico e responsabilizar o denunciante caso este aponte um fato dolosamente inverídico, contra algum desafeto”, alerta a especialista, que prossegue em sua análise. “Muitos síndicos temem responder pelo delito de ‘denunciação caluniosa’ (art.339, CP) no caso de fazerem a comunicação, acreditando que há indícios de uma agressão real, depois não confirmada pela polícia. Este temor não procede, pois apenas fica configurada a ‘denunciação caluniosa’ quando alguém der causa à instauração de um inquérito policial e outros procedimentos, sabendo que o denunciado é inocente”.

Por fim, Marisa fala da assistência que deve ser prestada às vítimas de agressão no momento do flagrante, bem como após a comunicação do fato. “Passa, primeiro, pela disponibilização de meios de comunicação, transporte, suprimentos e socorro à vítima, que precisa se sentir acolhida. Deve-se tomar o cuidado de não a questionar acerca da situação, seus sentimentos e relação com o agressor. É preciso entender que a vítima já está em situação de sofrimento, e qualquer atitude impensada pode revitimizá-la, em vez de lhe proporcionar ajuda. E, numa segunda fase, os cuidados passam pela coleta de imagens de câmeras que possam ter filmado o fato ou momentos anteriores ao mesmo, pelo isolamento de local a fim de preservar possíveis provas e até pela disponibilização de advogados”, conclui.

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