Nova lei facilita mudança de uso de edifícios

vander andrade

Uma das mais recentes alterações do Código Civil brasileiro (lei n. 14.405 de 12/07/2022), ainda provoca debates e, mesmo, embates calorosos – a maioria deles, aponta possível afronta ao texto constitucional. Por esse entendimento, a nova legislação seria resistente às diretrizes contidas na Carta Magna, a nossa Constituição Federal (1988). Por essa razão, ela vem sendo considerada, por alguns estudiosos, como texto de lei inconstitucional. Mas do trata esse lei?
Ela permite a mudança de destinação do edifício residencial (edilício) ou da unidade imobiliária, para comercial, por aprovação de dois terços (2/3) dos votos dos condôminos – e não mais 100% deles. Quais são os impactos, na prática, para quem é proprietário desses imóveis? Eles podem perder o valor dos seus ativos?
A maioria dos argumentos, pró-inconstitucionalidade, defendem a tese da afronta a um direito fundamental, que é o do direito de propriedade. Na ótica de tais juristas, a lei deixa de  reconhecer os pressupostos básicos, elementares, do princípio da função social da propriedade, registrado no ordenamento normativo pátrio (Constituição Brasileira) como verdadeira ameaça à estabilidade das relações jurídicas, na medida em que acarreta ao proprietário um risco de ver a unidade imobiliária, que integra o seu acervo de bens, divorciada de sua finalidade original. 

Nova lei: Argumentos a favor
O advogado e pós-doutor, Vander Andrade, não entende dessa forma. De acordo com ele, “para que possamos compreender a adequação da referida lei, com o texto constitucional vigente, precisamos nos valer da combinação de diversos métodos de interpretação, bem como do estudo mais amplo, que envolve, inclusive, os princípios regentes do direito condominial”. Uma das abordagens necessárias para que se possa compreender o conceito contido na nova lei, em consonância com a ordem legal e constitucional, “depende de seu próprio posicionamento no âmbito do Código Civil brasileiro” – explica.

A favor da nova lei: Somando perspectivas
Andrade indica que é necessário conjugar alguns artigos (do Código Civil: 1.332, III, 1.334, caput, e 1.336, IV). Por essa combinação, pode se concluir que a finalidade do edifício, e de suas respectivas unidades imobiliárias, deve estar registrada na convenção de condomínio e no ato de registro da instituição condominial. Na redação anterior (do art. 1.351 do Código Civil) era exigida a manifestação unânime dos coproprietários, caso fosse pretendida alteração da destinação imobiliária. A partir da nova lei, o quórum de 100% foi dispensado, bastando que dois terços (2/3) dos condôminos se manifeste em assembleia – “regularmente convocada para referido fim” – ressalta Andrade. Nova lei: Relativizado caráter absoluto do direito.
O novo modelo, de acordo com Andrade, reduz o rigor do dispositivo de lei, agora revogado, confirmando uma tendência há muito tempo consolidada, no sentido da “relativização do desgastado caráter de direito absoluto da propriedade, que não mais encontra guarida em nossa ordem jurídica” – avalia. Andrade, contudo, lembra que existem resistências doutrinárias, defendendo a tese de que a propriedade persiste como um direito absoluto, exclusivo e complexo. Não há como negar, entretanto, que a propriedade se mostra “como o mais completo dentre todos os direitos reais. Ela tem efeito ou vale para todos (caráter erga omnes) e permite, ao proprietário, os direitos de: gozo, uso, disposição e reivindicação” – diz, para contra-argumentar: “mas, daí, a se entender ser a propriedade um direito absoluto, como defendiam os romanos, parecendo algo distante da realidade fática e de nosso sistema normativo”.

Novo Direito Constitucional: Até direitos mais caros são relativos
Para sustentar sua conclusão, Andrade argumenta que o novo Direito Constitucional entende relativos até mesmo os direitos mais caros à pessoa humana, como é o caso da vida, “que pode ser atingida nos casos de legítima defesa e da liberdade, que podem sofrer restrições, nas hipóteses de prisão legal”. Compara que, tal como acontece com os direitos fundamentais, a propriedade se depara com uma série de restrições, que “perpassam as searas criminal, civil e administrativa, onde instrumentos como perdimento, expropriação e penhora, por exemplo, demonstram como esse tal direito pode ser atingido, a depender da configuração fática e jurídica em que ele se apresenta” – afirma.

Constituição Federal: Dá dicas do entendimento
Ainda de acordo com a Constituição Federal, Andrade indica que se deve observar alguns direcionamentos, como as funções: socioambiental do domínio (art. 224 CF), social da propriedade (art. 5º, XXIV, CF) e a econômica da propriedade, erguida esta ao status de princípio da ordem econômica constitucional (art. 170, II, CF). À partir deste último princípio, conclui-se que “a propriedade deve exercer sua função econômica, devendo ser utilizada para geração de riqueza, garantia de trabalho, recolhimento de tributos ao Estado, e principalmente, a promoção do desenvolvimento econômico” – reafirma, para concluir: “o direito de propriedade não é absoluto, uma vez que são diversas as possibilidades de redução ou até mesmo perda das prerrogativas vinculadas à propriedade”. Ou seja, o interesse coletivo, subjacente à função social e socioambiental, e o interesse individual, perceptível na hipótese da usucapião, podem prevalecer aos interesses do proprietário (titular de domínio). Andrade destaca uma parte do código (no parágrafo primeiro do art. 1228) onde é delineado que o “…direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais” – onde, portanto, fica patente o objetivo maior atribuído à propriedade. Ou seja, fica claro que a função social da propriedade não pode ser compreendida em sua amplitude se “tal processo de compreensão de seu significado e alcance deixar de considerar a importância do princípio da função econômica da propriedade”. 

Função social e econômica da propriedade
Atualmente, observam-se diversos movimentos de relativização do direito privado, em razão da função social e econômica da propriedade. Andrade cita um autor do direito (BERCOVICI: 2005; 145) para quem “os direitos individuais não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo em seu exclusivo interesse, mas como instrumentos para a construção de algo coletivo”. Trata-se do “processo de funcionalização da propriedade”, lembra Andrade, citando outro autor (Karl Renner): “a função social da propriedade se modifica com as mudanças nas relações produtivas, transformando a propriedade capitalista, sem socializá-la”. E ainda (Bercovici): “a função social operou uma mudança essencial no capitalismo, na medida em que passou a fundamentar juridicamente a propriedade”.

Uso: deve atender necessidades individuais e coletivas
Dessa forma, torna-se importante considerar que a propriedade deve ser traduzida como um bem de necessidade essencial, sendo que a seu uso (e, porventura ganhos) deve se  identificado como condição própria ao atendimento das necessidades individuais e coletivas. Como ilustração, tem-se que estas necessidades podem estar alinhadas aos fins de moradia, comércio, indústria e outros. Nessa linha lógica, é forçoso reconhecer que a exigência de aprovação unânime dos proprietários, em relação à finalidade do imóvel, termina por inviabilizar, em alguns casos específicos, a tomada de decisão. Mantido tal entendimento, apenas um único condômino poderia impedir a mudança de uso, em detrimento da vontade da maioria dos proprietários – o que pode tornar difícil, ou inviabilizar em alguns casos, a sustentação econômica do condomínio.

Mudança de uso dos edifícios: Imposição econômica e tecnológica
Diversos edifícios empresariais, situados nos centros das grandes metrópoles, têm sofrido fortemente com as alterações do mercado de trabalho, impostas, seja pelas novas opções de teletrabalho (home office), seja pela possibilidade de prestação de serviços virtuais (remotos), reuniões on-line ou, até mesmo, pela circulação de documentos e de recursos financeiros promovidos pelas ferramentas digitais de comunicação – com sustentação na tecnologia. Entretanto, essa mudança ganhou impulso, nos últimos anos, não apenas pelo avanço tecnológico, mas pelo aparecimento da pandemia da Covid-19.

Diversos indicadores: Há déficit habitacional
Ao mesmo tempo, persiste uma crise habitacional de elevada intensidade, denunciada por diversos indicadores de déficits habitacionais. Estudos realizados no âmbito do mercado imobiliário apontam que “a procura por espaços comerciais individualizados e personalizados vem caindo ao longo dos anos, com isso gerando o esvaziamento de salas e edifícios de finalidade comercial” – esclarece Andrade, que completa: “some-se a isso as novas tendências de trabalho em espaços conjugados e multifuncionais” – os chamados coworks, uma nova configuração para os espaços de trabalho. Em vários estados assistimos a busca por alternativas à deterioração dos centros urbanos, através da criação de instrumentos legais e da instalação de equipamentos públicos voltados para a revitalização dos espaços. Esses esforços, que já obtiveram êxito em diversas cidades do mundo, começam a ganhar corpo e forma no Brasil.

De cidade caótica à cidade planejada
Uma das mais bem sucedidas experiências internacionais ocorreu “na cidade de Nova York, com a edificação do High Line, um parque linear público, no West Side de Manhattan, que foi revitalizado a partir de um trilho de trem sem uso. Seu exemplo nos mostra a importância da revitalização urbana, especialmente nas grandes cidades” – sustenta Andrade. A realização desse projeto, a partir da obra pública, envolveu conhecimentos de arquitetura, paisagismo e urbanismo conjugados com o retrofit privado, “o que não tardou em impactar de forma positiva diversos estabelecimentos empresariais abandonados e precarizados na região circunvizinha” – lembra.

Imóveis: Usos alterados, valorizados
Esses imóveis acabaram tendo seus usos alterados para finalidade residencial ou comercial, tornando a região, em pouco tempo, uma das áreas mais caras e valorizadas de toda a cidade. Ações semelhantes ocorreram “em Miami, onde existe o design District1; em Barcelona, com o Poblenou2; e mesmo em Londres, onde se aproveitou o evento dos Jogos Olímpicos para revitalizar o bairro de Stratford3, uma das áreas mais pobres e carentes da Europa, na zona leste da cidade” – enumera, como casos eficientes de mudança de finalidade do uso.

Espaços públicos: Redesenhados e ressignificados
Esses espaços públicos foram redesenhados e, com o tempo, ressignificados, conectando pessoas aos seus bairros de moradia, agregando e adicionando novos modais de mobilidade, aumentando a segurança pública e, com isso, trazendo maior qualidade de vida para seus moradores. No Brasil, “é possível citar os exemplos da cidade de São Paulo, com programas como o Requalifica Centro, criado por meio de lei municipal (2021), que estabelece incentivos fiscais para a efetivação de ações voltadas para o retrofit urbano e para a reconfiguração dos espaços habitacionais” – lembra Andrade para indicar a relevância da nova lei.

Mudanças: Na cidade de São Paulo
Na capital paulista também pode ser citado “o exemplo da edificação do Hotel Rosewood, instalado na Cidade Matarazzo, onde modificaram a finalidade original dos edifícios”, lembra. No local, funcionava um hospital e uma maternidade que foram, inclusive, movidos do terreno para outro lugar, mas com a preocupação de preservar suas características de prédios tombados (patrimônio cultural da cidade de São Paulo) e, desse modo, “dar lugar ao mais requintado empreendimento hoteleiro da América Latina” – conta.

Rio e Belo Horizonte: Mudanças para ativar a economia
Na cidade de Belo Horizonte, também existem estudos preliminares nessa linha lógica, da conversão de edifícios comerciais e hoteleiros em espaços de moradia e residência. Já no Rio de Janeiro, o programa Reviver Centro prevê estímulo “à locação social e incentivos fiscais para a construção de novas moradias e à conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou multimodal (residencial e comercial)” – indica, Andrade. Ele cita, no Rio, o exemplo emblemático do Hotel Glória, cujo retrofit (obras de revitalização sem imposição de mudanças arquitetônicas, como opção de conservação e melhoria do patrimônio) implicou na alteração de sua finalidade incipiente, deixando de ser um dos mais tradicionais hotéis da cidade para se transformar em um condomínio residencial de elevado padrão.

Cidade: Agora há condição de planejar
Andrade conclui que, “seja sob o prisma finalístico, flexibilizar o modelo decisório para possibilitar a alteração da finalidade do condomínio residencial (edilício), seja sob o aspecto da função social e econômica da propriedade, vemos na nova legislação algo extremamente benfazejo” e alinhado com os mais “relevantes interesses sociais e econômicos e, perfeitamente, em sintonia com as diretrizes e postulados constitucionais, embora tenha chegado com censurável atraso, próprio dos trópicos” – lamenta. Segundo Andrade, não há porque se temer o risco de possível “instabilidade das relações jurídicas, uma vez que referida lei possui destinatário certo: os espaços residenciais ou empresariais” (ou mesmo mistos), que necessitam de serem reconfigurados para atingir o “objetivo maior de qualquer direito fundamental: a dignidade humana, que deve ser compreendida, não somente sob a ótica de um direito fundamental individual, mas sob o espectro de uma tutela social mais ampla, que tenha o poder de permitir à propriedade gerar efetiva riqueza, e incluir todos os que intentem se amoldar às novas exigências de nossos tempos” – resume, Andrade.

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Vander Andrade 

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