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PANDEMIA AGRAVOU USO IRREGULAR DESSA ÁREA COMUM, ONDE FICAM LARGADOS CALÇADOS, SACOLAS E ATÉ ROUPAS, GERANDO BAGUNÇA, RISCOS E CONFLITOS. O QUE O SÍNDICO PODE E DEVE FAZER?

 

“Costumo dizer que o síndico que passou desde o início pela pandemia nunca mais será o mesmo profissional. Será um síndico mais preparado, mais informado, e seguro, um verdadeiro ‘herói’. A vida nos condomínios, neste período, virou do avesso, e o gestor se viu diante de questões polêmicas nunca imaginadas. E muitas sem um consenso na esfera jurídica e pública, com tantos decretos e leis, editados quase que semanalmente. Todas as limitações impostas pela legislação para uma convivência pacífica no condomínio sempre serão testadas pelos moradores. Com o advento da Covid-19, parece que não há mais limites”. A constatação é de Ana Maria Cristina Afonso, síndica profissional e uma das convidadas pela Revista dos Condomínios para tratar, nesta reportagem, da questão que envolve um dos ambientes mais sensíveis dos condomínios: o hall de acesso às unidades.

“Um dos problemas que parece sem importância, mas tirou muito o sono dos síndicos: sapatos e objetos no hall dos andares. Fala-se muito pouco sobre essa área comum, a não ser quando os moradores resolvem decorá-la, mudando a cor das paredes, das portas, trocando o piso… Além disso, ela é uma espécie de cartão de visita. Por lá circulam, além dos moradores de cada andar, seus convidados, funcionários e prestadores de serviço. De repente, eis que o morador se apropria do hall como extensão de sua unidade privativa. A pandemia e o pânico inicial o levaram a ultrapassar os limites. E, na intenção de se proteger, fazer do hall o depósito de sapatos e outros objetos. Há, inclusive, relatos de roupas usadas deixadas ali. Mas, como em qualquer área comum, o hall merece a mesma atenção quanto à sua funcionalidade, organização e segurança”, afirma Ana Maria, também professora e tradutora.

Ela aponta os motivos pelos quais os calçados, por exemplo, não devem ser deixados no hall. “Primeiro de tudo, a equipe de limpeza merece respeito, pois essas pessoas também estão sujeitas ao contágio. Além disso, demanda mais tempo remover todos esses objetos para a faxina da área. Há ainda o aspecto da organização – gera um aspecto de bagunça. Podemos comparar tal situação com uma sacada cheia de roupas no varal. Há ainda o risco de furtos e danos aos calçados pela aplicação de produtos químicos, o respeito à funcionalidade da área comum para livre acesso às unidades e, sobretudo, a segurança – que nunca deve ser flexibilizada. Essa questão está ligada aos itens de proteção e combate a incêndio, como as minuterias, iluminação de emergência, sensores, portas corta-fogo, extintores, hidrantes e o acesso às escadas em perfeitas condições e de acordo com as normas vigentes”, pontua. Isto é, nada de calçados e outros objetos largados pelo caminho que representem obstáculos ou risco de acidentes.

Bióloga, pesquisadora aposentada da Fiocruz-RJ, onde realizou pesquisa sobre doenças negligenciadas, Marise Nunes é também síndica orgânica. E, convidada pela Revista dos Condomínios, fala da ineficácia da prática de deixar itens como calçados, roupas e sacolas nos halls de acesso. “Quando a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia mundial pelo novo coronavírus, não bem estava definido como acontecia a propagação do vírus. Naquela época, e em função das orientações sanitárias iniciais, para não entrarem nas unidades privativas usando sapatos, os moradores passaram a deixá-los nos corredores para evitar a disseminação do vírus. Com o avanço das pesquisas científicas, foi então possível esclarecer como ocorre a propagação. Hoje sabe-se que a transmissão da doença, de natureza respiratória, está ligada ao ambiente. O maior risco acontece pelo ar, ao serem frequentados ambientes fechados e com aglomerações”, sinaliza.

Assim, Marise explica que limpar as solas de sapato, superfícies, higienizar sacolinhas de mercado ou embalagens não é algo fundamental para evitar o contágio, segundo a própria Fiocruz. “A divulgação das medidas preventivas corretas, por meio de circulares, avisos e e-mails, pode contribuir para que os moradores mudem os hábitos equivocados incorporados no início da pandemia”, defende, reforçando que é preciso investir em medidas eficazes, como o uso de máscaras adequadas e o distanciamento social, inclusive nos elevadores. “Deixar os sapatos nos corredores não é uma recomendação da área de saúde”, sentencia Marise, que também lembra da falta grave no quesito segurança. “Os corredores funcionam como rotas de fuga. Aqueles que os obstruem agem privilegiando só a comodidade. Não percebem que podem ser diretamente prejudicados na ocorrência de qualquer incidente ou situações de emergência.”

Ana Maria Cristina Afonso volta à cena para nos dizer de que forma os síndicos podem atuar nessa questão, que, por vezes, gera graves conflitos entre os condôminos. “Seria mais fácil contar com o famoso e tão repetido ‘bom senso’. Mas sabemos que não é sempre assim. O síndico deve evitar conflitos se utilizando da melhor ferramenta que possui: a comunicação. E mostrar a importância da colaboração e participação do morador nos cuidados com o hall de sua unidade. Falando das normas vigentes, nós não podemos esquecer das Instruções Técnicas do Corpo de Bombeiros de cada estado. Em São Paulo estamos atentos à Instrução Técnica de números 11/2018: 5.5.1.1 (os acessos devem permitir escoamento fácil de todos os ocupantes) e 5.5.1.2 (devem permanecer desobstruídos em todos os pavimentos). Daí a importância da participação na Brigada de Incêndio.”

Ela aponta que o síndico pode valer-se de uma convenção e de um regimento interno, onde se discipline o uso das partes comuns e privativas. Como diz J. Nascimento Franco, autor do livro ‘Condomínio’, “ao traçar as normas de utilização do edifício, nas suas unidades privativas e nas de uso comum, a convenção visa a resguardar, em proveito de todos, o patrimônio condominial e a moralidade do ambiente, num sistema de normas que, mais rigorosamente do que as decorrentes do direito de vizinhança, objetivam garantir a todos os ocupantes das unidades autônomas sossego, tranquilidade e segurança”. Ana cita ainda normas do Código Civil, como o direito de vizinhança, estabelecido no art. 1277 (o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que a habitam, provocados pela utilização de propriedade vizinha).

Sossego, insalubridade e segurança dos moradores têm de ser preservados

Outra legislação, lembrada por Marise Nunes, está disposta no parágrafo IV do artigo 1336 do Código Civil (dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes). “Entretanto, a Covid-19 é uma doença nova, e não existem regras e nem penalizações específicas na grande maioria dos Regimentos Internos dos condomínios, para proibir e multar os moradores que insistem em deixar os calçados nos corredores. Para alterar o regimento e incluir um novo artigo sobre o tema, é necessária decisão assemblear com aprovação de 2/3 dos condôminos. O que, na situação atual, se torna bem inviável.”

Marise Nunes complementa. “O síndico deve, inicialmente, solicitar verbalmente aos moradores que venham fazendo uso e obstruindo os corredores que não deixem seus calçados ali. Em caráter informativo, pode explicar que essa medida não é eficaz. Se não for atendido, o morador deve ser advertido formalmente, e, em caso de reincidência, multado com base no Código Civil, que prevalece sobre a convenção e o regimento desatualizados. Alguns têm se excedido e acumulam calçados de maneira permanente nas portas, o que causa a insatisfação dos vizinhos. Esse ato dificulta o trânsito dos demais, atrapalha a limpeza e dá um péssimo aspecto aos corredores. Do ponto de vista social e sanitário, a atitude correta, e que se espera, é que os moradores retirem os sapatos antes de entrar nas unidades e usem álcool 70% para borrifar e higienizar a sola dos mesmos ou criem um local só para depositá-los, próximo à porta, pelo lado de dentro da sua unidade”, conclui.

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