O desafio de lidar com o condômino antissocial

Há punições possíveis, e novas interpretações da legislação nos tribunais abrem espaço para medidas mais radicais, como a perda da posse da unidade habitacional

 
CAIO CESAR OLIVEIRA

Sabe aquele condômino que, por seu reiterado comportamento antissocial, gera incompatibilidade de convivência com os demais? Faz obras em horários proibidos, barulhos a qualquer hora, profere ofensas, destrata funcionários do condomínio… Em casos extremos, após muitas reclamações, o que o síndico pode fazer? O que diz a lei? Vale expedir comunicados, aplicar multas? Em última análise, pode-se recorrer à Justiça? A expulsão é uma solução possível?

Caio César Pereira da Mota Oliveira é graduado em Direito pela Universidade Católica de Goiás (atual PUC/ GO), especialista em Direito, Negócios e Operações Imobiliárias pelo Instituto Dalmass, em parceria com a Faculdade Cambury; e especialista em Direito Público pela Faculdade Atame – Unidade Goiânia, além de professor em diversas instituições de ensino superior. “Ao largo do tempo, o direito de propriedade gozou de caráter absoluto, não se sujeitando a quaisquer limitações. No entanto, com os avanços da sociedade e a incessante busca por políticas e leis mais justas, este cenário vem sofrendo consideráveis mudanças”, inicia nosso entrevistado.

Segundo ele, tal fato pode ser facilmente percebido por meio da Constituição Federal de 1988, comumente chamada de ‘Constituição Cidadã’, justamente pela intransigente defesa da cidadania, do Estado Democrático de Direito e da dignidade da pessoa humana – fato que repercutiu no Código Civil de 2002, incutindo em seus artigos disposições acerca do direito de propriedade, de forma a limitá-lo. Aludidas limitações ao direito de propriedade são tidas como restrições ao seu exercício e à sua extensão, sem acarretar, por si só, diminuição do patrimônio de quem é afetado por ela ou mesmo o enriquecimento de quem as aproveite.

“A Constituição Federal admite o direito de propriedade como individual e inviolável, devendo, contudo, atender a função social – leia-se o interesse público na utilização da propriedade privada. O condomínio edilício, ficção jurídica na órbita do Direito, a toda evidência, embora detenha legitimidade de atuar em juízo, ativa e passivamente, representado pelo síndico, não possui personalidade jurídica. E, nesse contexto de sua regulamentação, é que se verifica a proteção dos bens tutelados do direito de vizinhança, além dos eventualmente previstos nos normativos internos, como a convenção e o regimento”, prossegue Caio Cesar.

Dessa forma, o artigo 1.277 do Código Civil veda o uso anormal da propriedade, ao passo que o artigo 1.336, inciso IV, do mesmo diploma, considera dever do condômino não a utilizar de forma prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos outros proprietários ou possuidores, bem como em desatendimento aos bons costumes. Além disso, com o passar do tempo, verificou-se que o número de conflitos em condomínios tem aumentado em número e gravidade, fazendo- -se necessária a imposição de medidas mais severas e sanções mais eficazes. É nesse momento que surge a discussão sobre a possibilidade de exclusão do condômino antissocial, tema ainda divergente na jurisprudência.

“Em apertada síntese, a partir de uma visão que entende ser impossível a exclusão do condômino antissocial sob fundamentação da prevalência do direito de propriedade e do princípio da dignidade da pessoa humana, cresce a corrente que brada pela possibilidade, sim, de exclusão, em respeito ao princípio da função social da propriedade, no qual o direito do coletivo se sobrepõe ao direito individual”, explica.

Nesse sentido, o especialista cita o autor Silvo de Salvo Venosa. “Nossa conclusão propende para o sentido de que a permanência abusiva ou potencialmente perigosa de qualquer pessoa no condomínio deve possibilitar sua exclusão mediante decisão assemblear, com direito de defesa assegurado, submetendo-se a questão ao Judiciário. Entender- -se diferentemente na atualidade é fechar os olhos à realidade e desatender ao sentido social dado à propriedade pela própria Constituição. A decisão de proibição não atinge todo o direito de propriedade do condômino em questão, como se poderia objetar; ela apenas o limita, tolhendo em seu direito de habitar e usar da coisa em prol de toda a coletividade. Quem opta por residir ou trabalhar em condomínio de edifício ou comunhão condominial assemelhada deve amoldar-se e estar apto para a vida coletiva.”

CRISTIANO DE SOUZA

Legislação é flexível e condomínio pode definir a penalidade

Formado em Direito pela FDSBC e consultor jurídico condominial há mais de 26 anos, Cristiano de Souza é vice-presidente da Associação dos Advogados do Grande ABC e membro da Comissão Especial de Direito Condominial do Conselho Federal da OAB e da Comissão da Advocacia Condominial da OAB/SP. Ele também conversou com a REVISTA DOS CONDOMÍNIOS sobre o tema. “Ao contrário do Código Civil de 1916, que trazia um sistema jurídico fechado, que exigia dos operadores do Direito uma aplicação da letra da lei, o atual Código Civil possibilita aos mesmos profissionais, e à sociedade em geral, que atuem de forma ativa na determinação do sentido da norma, formando um sistema jurídico aberto em alguns momentos. Essa nova estrutura faz com que a linguagem utilizada no atual Código Civil seja uma linguagem com projeção para o futuro, pois, ao possuir normas abertas, ou seja, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que estrategicamente se encontram distribuídos pela nova legislação, possibilita primeiro um dinamismo da sociedade sem prejuízo da lei; e segundo, uma aplicação da lei caso a caso, forçando aos condomínios uma análise mais apurada do que se quer tratar”, contextualiza.

Assim, esse é um conceito aberto, que caberá a cada condomínio estabelecer, em razão do reiterado comportamento que gerar incompatibilidade de convivência, a aplicação da penalidade. Inicialmente, a penalidade tratada é pecuniária, fixada em dez vezes o valor da contribuição condominial. Conforme a melhor técnica de redação legislativa, por ser o parágrafo único uma fórmula de divisão do conceito trazido pelo artigo com o dever de complementar o sentido do mesmo ou abrir exceções, vemos que, de maneira formal, deve a multa do antissocial ser uma consequência da pauta chamada para o artigo 1.337, e não uma pauta específica, haja vista que sua validade deve ser confirmada em ulterior deliberação de assembleia, momento que será observado a ampla defesa, preservando-se o quórum de 3/4.

“Ocorre que ganhou corpo a tese do desembargador Izidoro Angélico, de 2005, que sustenta a possibilidade de exclusão do antissocial, com base no uso anormal da propriedade e da defesa da sociedade em manter a paz social, possibilitando que o magistrado determine, inclusive, a perda da posse do antissocial. A tese, controvertida até hoje e aceita em partes pelos tribunais, não responde a questões fáceis, tais como: por quanto tempo a restrição permaneceria, uma vez que a Constituição Federal não permite pena perpétua? O afastamento poderia desfazer um núcleo familiar, também protegido pela Constituição? Poderia a pessoa afastada do condomínio defender sua propriedade participando de assembleias?”, alerta Cristiano, para concluir.

“Certo, no entanto, é que o antissocial deve ser configurado em cada condomínio por reiterado comportamento, ou seja, uma série de atos que o condomínio adverte e multa, sendo a multa em dez vezes o valor da cota condominial, ou mesmo a decisão por afastamento da posse. São atos excepcionais, pensados e deliberados pela coletividade, sem leviandade ou irresponsabilidade, uma vez que atingem diretamente direitos protegidos constitucionalmente”, finaliza.

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