Homeschooling: de quem é a responsabilidade por educar crianças e jovens?

Projeto está em análise no Senado e, se aprovado, pode ser sancionado. Há correntes contra e a favor da medida. Mas, quais fatores pesam em cada um dos casos?

 
ALAN RIOS

A Câmara dos Deputados aprovou em 18/5 o texto-base da proposta que regulamenta a prática da educação domiciliar no Brasil, ministrada pelos próprios pais ou responsáveis, também conhecida como homeschooling. Entre outras coisas, para usufruir desse modelo, o estudante deverá estar regularmente matriculado em uma escola, que acompanhará o desenvolvimento educacional durante o período. O assunto é polêmico e divide opiniões em todos os níveis, por isso a REVISTA DOS CONDOMÍNIOS foi ouvir especialistas no assunto.

O jornalista Alan Rios, autor do livro-reportagem “Os porquês da educação domiciliar no Brasil” que aborda essa questão (escrito no primeiro semestre de 2018, antes portanto do julgamento do Supremo Tribunal Federal e da aprovação do projeto de lei na Câmara), diz que essa é uma prática antiga e complexa pois envolve não apenas a Pedagogia, mas também aspectos legais e visões sociais do Brasil, políticas públicas históricas de educação e outros tópicos. Dentro de cada uma dessas áreas, existem questionamentos de ambos os lados, favoráveis e contra a prática, que instigam ainda mais discussões.

Segundo ele, as famílias adeptas ao ensino domiciliar citam alguns pontos que consideram como favoráveis ao desenvolvimento desses estudantes. Os mais relevantes dizem respeito à forma de condução dos estudos. “Com o homeschooling, os pais dizem se colocar como facilitadores do conteúdo aos filhos. Ou seja, eles atuam em uma posição em que essas crianças e adolescentes que estudam em casa recebem as orientações básicas e têm maior autonomia para definir seus estudos, podendo escolher, por exemplo, estudar conteúdos mais avançados para a idade quando percebida aptidão nessa área, ou criar metodologias que usem de temas mais próximos ao cotidiano do aluno para auxiliar na aprendizagem de matérias em que ele apresente maior dificuldade. Essas famílias ainda ressaltam que uma sala de aula comum costuma ter cerca dezenas de alunos que recebem o mesmo tipo de conteúdo, da mesma forma, geralmente massificada, o que não aconteceria no homeschooling, em que o aluno faz atividades próprias para ele, respeitando individualidades, facilidades e dificuldades. Para os adeptos à educação domiciliar, essas e outras características fazem com que o desenvolvimento intelectual do aluno se forme mais completo”, explica.

Questionado sobre os principais problemas que esse modelo poderá provocar, Alan Rios, que tem experiência como repórter em veículos como Correio Braziliense, Agência do Rádio e Portal R7 e como pesquisador com trabalhos em Educomunicação, disse ter percebido um primeiro foco na socialização. “Quem rejeita a legalização desse modelo de ensino pontua que a retirada de um estudante de uma escola acaba trazendo prejuízos sociais, já que ele não vai participar de todas as interações proporcionadas pelas instituições de ensino, que unem diferentes estudantes, com diferentes realidades de vida, diferentes famílias, saberes e formas de pensar. Mesmo que famílias que adotam o homeschooling argumentem que essa socialização existe em outros ambientes, fora do colégio tradicional, críticos lembram que esses pais tendem a incluir os filhos em círculos sociais semelhantes ao modo de pensar deles, como a interação com crianças e adolescentes com a mesma religião, classe social ou outros aspectos, não oferecendo assim a diversidade. Outros s são a possibilidade de serem vítimas de crimes de cunho sexual que seriam identificados na escola por mudanças de comportamentos, como a formação de um pensamento único baseado no único contexto familiar em que eles cresceram e como a falta de contato com adversidades da vida proporcionadas por um contexto não familiar, um fator que pode trazer dificuldades de lidar com situações de contraste ao ambiente que tende a ser acolhedor no lar”, relata.

Se aprovado o homeschooling, na prática os pais que irão ensinar os filhos em casa deverão seguir a Base Nacional Comum Curricular definida pelo MEC e, além disso, poderão incluir matérias e disciplinas adicionais à rotina de ensino. Aí surgem outros questionamentos, como de que forma os pais devem se preparar para tal? Quais suas competências e formações necessárias? Será que que estarão de fato para assumir o papel de “mestres”? Para Alan Rios, que ganhou o Prêmio Paulo Freire de Jornalismo, promovido pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação e Unicef, essa é uma discussão que não tem um caminho único, pois os pais já aplicam o homeschooling mesmo antes da regulamentação e já trocam experiências diversas sobre formas de preparação. “O texto aprovado na Câmara dos Deputados estabelece apenas um parâmetro básico que diz respeito à competência intelectual dos pais para que eles estejam aptos a fornecer o ensino em casa, que é comprovar a escolaridade de nível superior ou em educação profissional de pelo menos um deles. Nos dois primeiros anos de vigência da possível lei, eles podem apresentar apenas um comprovante de matrícula nesses níveis. Essas são as exigências básicas. Já o modelo ideal de preparação depende de uma série de fatores, como a idade do aluno, os conhecimentos que ele já adquiriu, as suas facilidades e dificuldades. A troca de experiências com pais que já educam em casa, livros já publicados com metodologias para tal e até mesmo cursos online podem auxiliar nesse processo”, avalia.

Como serão os critérios de controle?

Caso o projeto vire lei sem alterações, serão impostos alguns critérios de controle pelo sistema educacional como manter a matrícula anual do filho em uma escola, independentemente ou não de frequentá-la, pois que ela vai cumprir um papel semelhante ao de um fiscalizador ao acompanhar, por exemplo, o desenvolvimento desses alunos que estudam em casa, promover encontros semestrais com os pais ou responsáveis legais e realizar avaliações. Neste item, especificamente, devem ser semelhantes àquelas já aplicadas no cotidiano escolar, com algumas alterações. Na pré-escola, deve ser feita uma prova anual qualitativa e cumulativa dos relatórios trimestrais que os pais devem enviar. Nos ensinos fundamental e médio, além de analisar os relatórios, há uma avaliação anual com base no conteúdo curricular. Já em relação às obrigações legais dos pais, eles deverão cumprir os conteúdos da Base Nacional Comum Curricular, manter um registro periódico das atividades pedagógicas realizadas, enviar relatórios trimestrais dessas atividades à instituição de ensino, realizar atividades pedagógicas que promovam a formação integral do estudante e contemplem seu desenvolvimento intelectual, emocional, físico, social e cultural, além da garantia de convivência familiar e comunitária do estudante.

Em termos de infraestrutura necessária e sobre o ambiente de casa ideal para a educação, Alan Rios avalia que isso vai depender muito de cada família, “mas o básico para adaptar um lar em que o filho estuda em casa sempre vai ser um ambiente propício para estudos, que permita uma boa concentração, um conforto necessário e equipamentos que sejam importantes para a etapa de aprendizado em que ele esteja inserido.”

Outra questão levantada é se os pais poderão dar aulas também para filhos de outras famílias, como vizinhos, por exemplo. De acordo com o especialista, como o projeto ainda está em análise no Senado, será necessário aguardar para que alguns pontos fiquem mais claros, como se só os responsáveis diretos poderão dar essas aulas ou não. De toda forma o projeto busca admitir “a educação básica domiciliar, por livre escolha e sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis legais pelos estudantes”.

Governo a favor, entidades contra

Questionado sobre a possibilidade de o projeto poder virar realidade com sanção do presidente se aprovado no Senado, Alan Rios avalia que sim, justamente por ter apoio de uma base ampla do atual governo que já garantiu, por exemplo, a aprovação de um requerimento de urgência na Câmara para encaminhar o projeto de lei. Por outro lado, a oposição se movimenta em sentido contrário, o que pode significar mudanças no texto ou mecanismos que adiem a tramitação no Senado. Atualmente o projeto está atualmente na Comissão de Educação, cujo presidente já se posicionou contra o tema e outros senadores já fizeram pedidos para que sejam feitas audiências públicas para ampliar a discussão do projeto antes de qualquer andamento.

“Esses debates devem acabar acontecendo e ampliando a discussão sobre pontos positivos e negativos de uma aprovação do homeschooling, o que é criticado por quem defende o ensino, sob o argumento de que já há discussões sobre o tema há muitos anos no Brasil, sem avanços significativos. O avanço que os defensores da pauta querem neste momento é a aprovação no Senado o quanto antes, para que o texto chegue à sanção presidencial. Mas até lá também devemos lembrar que o Senado pode promover mudanças significativas no texto. Alguns trechos do documento que será relatado na Comissão de Educação dizem respeito a obrigações de difícil fiscalização. Senadores podem questionar, por exemplo, como o Estado iria garantir que as famílias que optam pela educação domiciliar estão promovendo a formação integral do estudante contemplando seu desenvolvimento social, já que essa é uma aptidão não tão simples de se avaliar como é a aptidão intelectual para o saber de uma matéria escolar. Esse é só um dos pontos que será muito debatido. Ainda há um longo caminho antes do projeto ser transformado, ou não, em lei válida para todo o país”, pondera Alan Rios.

Na outra ponta, entidades do setor criticam a medida por entenderem, entre outros pontos, que representa um risco à garantia do direito fundamental à educação, além de restringir a troca de ideias e visões de mundo contraditórias e impactar na socialização dessas crianças e jovens. Para Alan Rios é complexo apontar uma verdade única para um sistema de ensino que é aplicado de formas tão distintas, por famílias tão diferentes e realidades opostas. “Mas podemos, sim, questionar a restrição de visões de mundo de uma família que opta pelo homeschooling ao levantar pontos como por qual motivo a maior parte desses pais querem tirar os filhos das escolas? Qual a visão da maior parte dessas pessoas sobre temas sociais, já que a escola é uma representação da sociedade em alguns pontos? Quais os círculos sociais vão estar inseridas as crianças e adolescentes que estudarem em casa? Também podemos levantar o debate sobre a tendência dos pais em proteger o filho e dar a ele a visão de mundo que a família tem. Isso não é negativo, mas é ainda mais benéfico quando complementado com outros pensamentos, outras visões de mundo”, explica.

Outro perigo apontado por quem discorda do projeto é o risco de abandono intelectual. Segundo Alan Rios, o projeto em discussão quer justamente modificar o entendimento de abandono intelectual para não abranger casos em que as crianças fora da escola estão em homeschooling. “Também é difícil que essas famílias cometam um abandono intelectual, pois elas geralmente estão empenhadas em fornecer, da forma que julgam necessário, uma educação. Mas, claro, pode sim haver exceções. E para isso que mecanismos mais rígidos de fiscalização e controle podem ser acrescentados ao projeto”, avalia.

O Brasil, no entanto, não está sozinho na questão do homeschooling. A Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) cita como exemplos: Estados Unidos, Canadá, Colômbia, Chile, Equador, Paraguai, Portugal, França, Itália, Reino Unido, Suíça, Bélgica, Holanda, Áustria, Finlândia, Noruega, Rússia, África do Sul, Filipinas, Japão, Austrália e Nova Zelândia. “Também podemos ressaltar que há países que proíbem a prática, com destaque para a Alemanha. Como são muitos países distintos, com regulações e realidades diferentes, uma análise sobre cada caso teria que ser feita com maior extensão”, conclui Alan Rios.

CECÍLIA EGITO

Projeto pode representar um desastre para a educação

Polêmicas não faltam no projeto de lei da educação domiciliar e, como vimos nas matérias anteriores, há argumentos de ambos os lados. Mas o que será que pensam aqueles que há anos dedicam suas vidas e conhecimentos para lecionar? Professora há quase duas décadas, mestre em Letras e doutora em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, Cecília Egito é firme na sua posição: “Num país onde grande parte das famílias não tem o devido acesso ao conhecimento e às fontes seguras de informação, o resultado da aprovação de tal proposta pode ser desastroso. A educação formal, com base na ciência, garante que toda criança e todo adolescente aprendam com profissionais, com especialistas de cada disciplina, sem interferências inapropriadas.”

Questionada sobre os possíveis benefícios defendidos pelas famílias que são a favor do homeschooling, a especialista que é graduada em Letras pela Uerj, diz não conseguir observar um benefício sequer. Ao contrário, para ela os desafios do convívio permitem que o jovem se desenvolva como ser humano. “Além da garantia de aprendizado com profissionais da educação e não com leigos ou meros curiosos, a escola formal permite que o estudante tenha um cotidiano diversificado, convivendo com indivíduos diferentes, num ambiente democrático, com uma gama de raças, credos e culturas. O aluno é impelido a enfrentar os desafios do convívio e, assim, se desenvolver como ser humano. A educação domiciliar restringe a criança a um cenário isolado, intelectualmente pobre, sem janelas que lhe revelem todos os caminhos profissionais e pessoais que a vida pode oferecer”, pondera.

O assunto chamou a atenção do Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que é um órgão que tem como objetivo promover a defesa dos direitos das crianças, ajudar a dar resposta às suas necessidades e contribuir para o seu desenvolvimento criando condições duradouras e que soltou uma nota dizendo que “Crianças e adolescentes são sujeitos de direito – e não objetos de propriedade dos pais”. Questionada por quais motivos ela acha que o Brasil caminha para adotar esse modelo de educação, Cecília vê envolvimento político e religioso na questão. “Bolsonaro e a bancada evangélica tentam de todas as formas impor sua religião. Com permissão para tirar os filhos da escola, muitos pais evangélicos possivelmente incutirão nos filhos uma formação dogmática, sem base científica, sem livro didático, sem professor. Um retrocesso. Uma vergonha mesmo para cristãos como eu. Deus nos abençoou com liberdade de escolha, condição da qual serão privadas as crianças que não forem expostas a todo o conhecimento oferecido pela escola”, critica.
A respeito das competências e formações necessárias aos pais que quiserem adotar a educação domiciliar em caso de aprovação, Cecília pontua que segundo o Projeto de Lei, os pais devem ter apenas o ensino superior em qualquer área. “Certamente, na prática isso não será suficiente para garantir o ensino de todas as disciplinas ofertadas pela escola formal. Parece impossível um pai ou uma mãe se preparar adequadamente para lecionar todas as matérias escolares e ainda adicionar outras áreas à rotina do estudante. De qualquer forma, é vital que esse pai ou essa mãe busque ao menos alguma formação na área da Pedagogia a fim de entender minimamente como se constroem os saberes”, sugere.

Sobre parte da crítica que surge de entidades do setor que entendem, entre outros pontos, que o homeschooling restringe a troca de ideias e visões de mundo contraditórias e impactar na socialização dessas crianças e jovens, Cecília reforça que a socialização é parte essencial do processo educativo, de formação do caráter e aprendizado da ética. “É na interação que as crianças vivenciam as primeiras experiências sociais e enfrentam os conflitos éticos iniciais, que se tornarão maiores e mais comuns na vida adulta. Assim se forma o cidadão, no ambiente escolar, com os alunos experimentando relações: amizades se estabelecem, surge a convivência com a diversidade, aprende-se o respeito à diferença e inúmeros outros processos complexos de aquisição de valores humanos”, pondera a professora que também concorda com o risco de abandono intelectual: “Sem dúvida, sim. Se temos uma alta taxa de evasão escolar sem o homeschooling, com ele então essa taxa pode aumentar ainda mais.”

Impactos sobre o ambiente de ensino

Sobre o impacto que a adoção dessa medida, caso aprovada, trará para o ambiente do lar dos pais-professores ou áreas comuns de um condomínio, ela avalia que crianças e adolescentes que não estiverem na escola formal terão maior disponibilidade de tempo, pois não terão de se deslocar e possivelmente teriam uma carga horária de estudos menor. “Isso significa maior probabilidade de circulação desses jovens pelas áreas comuns de seus condomínios ou mais tempo dentro de suas casas ou apartamentos. Os resultados podem ser de toda ordem e só serão conhecidos após a implementação do projeto. Outro grande risco da educação domiciliar”. Ela acrescenta que a escola é o ambiente adequado para o ensino. “Toda escola tem seu espaço projetado por educadores e profissionais para ser seguro, salubre, educativo e, principalmente, motivador. Caso o síndico encontre a equipe apropriada para fazer os ajustes necessários, pode sim transformar uma parte comum do condomínio em um espaço destinado à educação”, explica.

Questionamos a professora e também especialista na área condominial se, diante da aprovação de tal medida, os condomínios edilícios poderiam assumir esse papel de escola. “De forma alguma! As escolas estão preparadas para o monitoramento e o direcionamento da socialização, são planejadas para isso, nasceram desse objetivo: promover a troca para construir conhecimento e desenvolver no estudante habilidades complexas. Condomínios têm outro objetivo e não devem assumir esse papel simplesmente porque não são projetados para tanto”, reforça.

E em termos de infraestrutura, o que seria necessário ter no ambiente de casa, quais adaptações seriam necessárias? Segundo Cecília, não há adaptações que possam assemelhar completamente o ambiente doméstico a uma instituição de ensino, mas ela faz uma ressalta: “seria necessário tudo o que criasse um ambiente mais estimulante ao estudo: iluminação adequada, mesa e cadeira confortáveis, local para organização do material de cada disciplina, acesso à tecnologia etc.”

“A escola formal se mostra importante também para garantir a saúde física e mental do aluno, não apenas a formação intelectual. Professores são treinados para perceber sinais de transtornos de aprendizado e mesmo de problemas físicos, e a orientar os pais para que procurem profissionais de saúde. Com o homeschooling, a criança perderá mais esse cuidado”, conclui a professora Cecília Egito.

ISABEL FABRIS

Qual papel das famílias nesse processo? Há reais condições?

Além de tudo o que já abordamos com grandes especialistas sobre o tema da educação domiciliar, há outro ponto crucial: quais os impactos que a medida, se aprovada, vai provocar sobre os estudantes e as famílias? Para tanto ouvimos Isabel Fabris, doutora em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio e mestre em Linguística Aplicada pela UFRJ. “Os impactos são muitos. O primeiro deles incide sobre a família e os seus papéis. Há espaço para mais essa atribuição na família moderna? O segundo recai sobre a escola. Quais são suas reais condições de acompanhar esse processo? E o terceiro refere-se ao estudante, cuja identidade remete à filiação a uma instituição educacional, que, por sua vez, tem funções diferenciadas, uma vez que a escola não é apenas um lócus de instrução. Ela é uma ponte entre a vida em família e a vida em sociedade. Uma sociedade organizada sabe bem da importância da inserção das crianças em um ambiente escolar. E por ambiente escolar, não me refiro apenas a uma sala de aula com a presença de um professor ou uma professora. Trata-se de um espaço de diversidade, tanto do ponto de vista do conhecimento, de desafios intelectuais e cognitivos, de diferentes espaços físicos e subjetivos, quanto do ponto de vista da convivência. A escola proporciona acesso a mundos”, avalia.
A especialista, que possui outras certificações em Cambridge University, PUC-Rio e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) continua com outros questionamentos: “Que estrutura as escolas têm para acompanhar esse processo? Qual o benefício que a criança tem de estar matriculada em uma escola, uma vez que não a frequentará? Essa medida parte do princípio de que os estudantes recebem apenas “conteúdo” da escola; visão essa extrema mente ultrapassada. E, por fim, caso o objetivo seja dar ao estudante apenas o acesso a ‘conteúdos programáticos’, a medida não só significa a desqualificação do professor, a redução da importância da sua formação, como também distorce a função primordial da família, que é cuidar da segurança física e emocional das crianças, da sua saúde, dar-lhe afeto e abrir-lhes a porta de acesso ao mundo. Nenhuma família tem deve assumir esse papel. Além de os pais não terem preparo necessário para executar essa tarefa, muitas vezes, suas interferências no processo escolar das crianças não são benéficas. Misturar essas funções é muito perigoso. Por isso a sociedade tem, sabiamente, escolhido as escolas como lugar de desenvolvimento intelectual e social”, pondera.
Tanto quanto a professora Cecília Egito, Isabel Fabris compartilha do pensamento de que não há benefícios na medida. “Honestamente, eu não consigo enxergar um benefício sequer. A menos que se tratasse de crianças sem o menor acesso à escola, por questões geográficas e de precariedade. E, mesmo assim, quando isso acontece, é porque o Estado falha em garantir o acesso à escola, o que é triste. Já, para crianças que têm escolas à sua disposição, esse modelo representa uma privação, um retrocesso sem precedentes. Incumbir às famílias a tarefa de ensinar, sem que tenham o preparo intelectual e profissional para isso, é uma calamidade. Uma medida dessas resulta na privação da convivência com outras crianças, de diversas faixas etárias e procedências e com adultos que ocupam diferentes posições dentro da escola. A grande riqueza da escola é essa possibilidade de estar com pessoas de diferentes formações e que contribuem ativamente no processo de desenvolvimento emocional, cultural e intelectual das crianças”, critica.
Sobre a nota da Unicef de que “Crianças e adolescentes não objetos de propriedade dos pais”, Isabel reconhece que os pais têm toda a responsabilidade com os filhos, inclusive perante a lei, mas isso não quer dizer que eles são sua propriedade. “Pelo contrário, os bons pais sabem que criam os seus filhos para que construam os seus caminhos e façam escolhas sobre a sua participação na vida. Eles têm consciência de que devem instrumentalizar os filhos para serem responsáveis por si no futuro. Até então, a família deve oferecer-lhes condições para um crescimento saudável. Nós temos leis que dizem serem passíveis de punição os pais ou famílias que negligenciarem, abandonarem ou os maltratarem os filhos, sejam eles legítimos ou não. Sabemos que na prática, em razão da nossa espantosa desigualdade social, dos nossos graves problemas estruturais, o Estado não consegue garantir essa defesa das crianças e dos adolescentes, porém, essa é a meta de qualquer ‘boa’ sociedade: cuidar da infância e da adolescência, garantindo educação, saúde e segurança. Portanto, há limites, sim, para as famílias em relação aos seus filhos. Elas não detêm o poder absoluto sobre eles. Pais e mães são passíveis de perderem a guarda dos seus filhos, se esses estiverem sofrendo negligência ou abusos”, alerta.
A professora chama a atenção para algo que, segundo ela, pode estar por de traz desse projeto, que é um profundo desconhecimento sobre o que é educação, o desprezo pela escola, papel do Estado no que concerne ao bem-estar social, pela família e pelas crianças. “Estamos, de fato, voltando aos tempos em que os filhos de famílias que tinham condições financeiras eram educados por tutores particulares. Os outros eram jogados à sua própria sorte. Creio que o governo hoje tenta cada vez mais desmerecer a cultura, a arte, a educação por entender que elas são transformadoras. Vivemos, portanto, um momento trágico, mas tenho certeza de que o conjunto da sociedade não compartilha desse pensamento. Os governos buscam formas de usar as instituições. Cabe a elas não se submeterem. Cada uma delas é muito importante para a consolidação da democracia. Elas não podem ficar à mercê de interesses políticos ou de jogo de poder. A função das instituições é exatamente exercer um papel crítico, reivindicar e lutar pelos direitos dos cidadãos, para além das ideologias”.

Os muitos impactos no cotidiano da vida familiar e em comunidade

Questionada sobre qual impacto a adoção dessa medida traria para a residência dos pais-professores, Isabel Fabris, que é assessora de inglês em escolas de educação infantil, fundamental 1 e 2 e professora de inglês e literaturas da língua inglesa e atua em cursos de formação de professores avalia que primeiramente é preciso saber como será organizado isso dentro de uma casa, tendo em vista que a vida contemporânea está cada vez mais assoberbada. “O mundo tem evoluído em muitos sentidos, porém pagamos um preço por essa evolução. Mais e mais, os pais dependem dos avós e cuidadores para seus filhos. As escolas têm sido mais requisitadas para oferecer um ensino integral, a fim de que as crianças possam ocupar-se de maneira produtiva, criativa e segura. Essa proposta vem na contramão do que a sociedade pede. As famílias que, porventura, tiverem interesse nesse modelo não terão, certamente, condições de acompanhar as crianças adequadamente. O que significa que elas terão que se virar sozinhas. O entendimento de quem elaborou tal proposta é tão limitado que deve basear-se em cartilhas, com conteúdo programático, planificado, estático, como se o trabalho das escolas se resumisse a cumprir conteúdo aplicado em provas. O processo de aprendizagem é muito complexo. Nós educadores, sabemos bem que nossa formação, iniciada nas universidades, somente se completa dentro das escolas. Além disso, muitas crianças comentam como é desagradável estudar com os pais. Eles, na maioria das vezes, transmitem impaciência, insegurança ou agem intolerantemente, por uma simples razão: eles não são educadores. São pais, cheios de expectativas ou aflições em relação aos filhos, o que é perfeitamente humano”, questiona.

Para a especialista, uma das funções da escola é de oferecer aos estudantes um espaço dinâmico, inovador, que contemple a diversidade, para que possa despertar o seu interesse pelo conhecimento, pelo mundo, para que eles possam, enfim, descobrir e desenvolver as suas potencialidades. “A escola não é um grande playground. Ela tem formato específico, um enquadre que proporciona muitas experiências e que convoca ao estudante agir de um certo modo. São espaços com funções próprias e recursos diversos, preparados, organizados a partir de propósitos específicos. Eles são dinâmicos, desafiadores e estão em permanente mudança. Um condomínio, por sua vez, é parte de uma casa. É um espaço privado. A fronteira necessária entre o público e o privado não fica bem estabelecida. A escola, sim, é um espaço público, que acolhe a criança tanto na sua subjetividade quanto na sua interação social. É extremamente necessário e saudável que a criança conviva com um outro um contexto mais amplo, em que a família não adentre, para que a sua privacidade seja respeitada, para que possa ter construir laços longe do olhar da família. Hoje, mais e mais famílias e escolas dialogam. Porém, as fronteiras existem, por mais tênues que possam parecer. A escola é uma instituição reconhecida pela sua capacidade de incumbir-se da educação e formação das crianças, nos diversos aspectos: social, cultural, instrucional, emocional. É um lugar de fortalecimento e de do desenvolvimento de competências, tais como a autonomia, a empatia, a criatividade, a resolução de problemas, o pensamento crítico e a capacidade de se relacionar com o outro, de lidar com a diversidade. É um lugar de desafio intelectual e social. É o primeiro espaço de socialização da criança fora do âmbito familiar. Como tirar isso dela?”

Para concluir, Isabel Fabris afirma que as crianças precisam de seu próprio espaço, da convivência com a diversidade, com a diferença, de estares em contato com outras regras, outros modos de interagir, outras maneiras de estar no mundo, e isso se aprende com seus colegas de escola. Nesse sentido, o Projeto de Lei, se aprovado, vai expor as crianças ao risco de abandono intelectual. “A escola é um lugar de muita atividade intelectual. Ali as crianças são expostas à cultura local, à cultura global, à música, à literatura, à arte, às línguas materna e estrangeira, aos jogos, às práticas escritas e orais de diversas fontes e gêneros. Os grupos de alunos, as turmas, têm um intercâmbio espetacular. E, por mais carente que seja o contexto escolar, ele é ainda um espaço muito mais rico e libertador do que se pode pensar.”

Ela não acredita que o Congresso Nacional aprove essa medida. “É preocupante que a experiência das crianças do nosso país seja reduzida a um condomínio, a uma rua, ou ao quintal de suas casas. Já é desolador ver a segregação nas escolas, que dirá trancar as crianças nos seus espaços domiciliares, nos seus guetos. Seria uma verdadeira tragédia. Há um outro lado danoso nisso tudo. Tenho uma pesquisa de doutorado sobre histórias de violência na família, contadas por coordenadores e professores, de escolas públicas e privadas. A escola é um lugar que detecta a violência. É um espaço em que muitas crianças e jovens pedem socorro, mesmo veladamente. A escola não é apenas um lugar de circulação de conhecimentos; é também um espaço social que a criança pode e deve ocupar, e, para algumas, é a única saída”, finaliza.

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